sábado, 29 de junho de 2013

472. MIRITO O MEU AMIGO LOUCO




Bronzino




mirito nasceu 
nasceu num palheiro 
como jesus

paredes de pedra rude 
amontoada 
pedra não aparelhada 

telhado de colmo
donde se espreitavam as estrelas e sentia a chuva fria entrada em dia de borrasca

na torre da igreja o sino tocava tocava
mirito nasceu de rosto belo e já trigueiro 
ao som da ave-maria

que deus o abençoe disse a mãe 
que a senhora da fátima seja sua madrinha e lhe faça a cruz na testa para afastar demónios e tentações 
disse a parteira da aldeia tia zefa do moinho 
a zefa da anunciação

a vizinha madalena rezou um padre-nosso 
e uma oração calada para ninguém ouvir a não ser nosso senhor

não te esqueças mulher de acender uma vela na santa eufêmia 
uma vela do tamanho do rapaz
tanto faz 
respondeu a parturiente 
a vela terá o tamanho da minha bolsa 
o que vale é a intenção 
e olha que a tua oração não irá cair em cesto roto


mirito nasceu
mirito cresceu


nasceu em noite de luar
de sombras a afagar a pobreza
e com o sino a tocar a tocar
prenúncio de tristeza
anúncio de morte a bailar a bailar

na escuridão a luz
no altar a cruz
que mirito haveria de carregar 
correia a enlaçar 
de aldeia em aldeia 
cantando e dançando melodias desconhecidas
até que um qualquer arimateia 
o levasse a sepultar em cova funda e anónima 
depois de o encontrar caído na curva da estrada poeirenta e resplandecente de luar

encontrá-lo-ia
agonizante sem remédio nem cura 
sem glória 
com a senhora morte ao lado


diria se pudesse
estou certo miro diria
se o soubesse 
leva-me para o norte que calor não suporto
leva-me para o norte onde é doce a morte 
doce e alva de neve pura 
onde perco a memória 
de vida malfadada

eu sou o mirito leve gentil louco e sem dono 
eu sou o próprio norte 
a liberdade 
a tristeza 
e a força da natureza
eu sou tudo o que o homem não é e despreza 
não sou como os demais

sou miro 
servo da terra 
dos céus 
das estrelas 
de bonanças e temporais e
quero ser enterrado em cova funda 
onde animais e homens não possam 
nem encontrar 
nem incomodar
que ressuscitar não quero


mirito cresceu descalço 
roto 
esfarrapado
com sobretudo de alto a baixo rasgado

sobretudo do inverno 
sobretudo do verão
sobretudo da chacota da garotada da freguesia
crueldade de rapaziada
para com o pobre desgraçado 
que andava andava e se sóbrio se escondia
em qualquer pinheiral


mirito não foi à escola 
não aprendeu a ler 
a somar 
nem seu nome aprendeu a escrever 
mirito não aprendeu a brincar

não foi à escola e de nada lhe serviria
contava até dois e depois 
qualquer número servia
oito cinco dez quatro 
raramente mencionava o três
letras não as conhecia
nem o   a  e  i  o  u

falava entaramelado 
mas asneiras dizia 
escorreito quando o arremedavam
essas eram poucos os que as não entendiam
mas na escola não se ensinavam apenas se aprendiam e quem as já conhecia 
afinal que proveito tirava de horas mortas a inquietar outros garotos

nunca aprenderia a ler 
a contar 
ou escrever
e mesmo que algo aprendesse 
seria necessário querer 

por injustiça assim nasceu 
vagueando ora soturno 
ora alegre feito bobo 
percorrendo
aldeias
povos
quintas
sendo escorraço de quintaneiros
pouco falando 
por não querer 
ou não saber que dizer


mirito cresceu com o vinho e com aquela cabeça tonta que desagrada aos homens e agrada a deus


um copo aqui outro além 
por alma de quem lá tem
vá lá um copo não faz mal é mirito quem diz
vá lá por um momento faz mirito feliz

vai-te embora rapaz 
o vinho ataca-te a moleirinha 
ficas mais estouvado do que és
bebe sumo 
um pirolito 
uma gasosa e 
dou-te um quarto de trigo com manteiga da arca

daí o enganava o taberneiro intentando besuntar o pão com margarina da lata suja ou com molho velho das iscas a saber a ranço


quero vinho o resto come-o tu
e mirito crescia enquanto o sobretudo encolhia


os rapazes vinham dos campos 
alguns tocados à paulada da lavra por acabar

jogavam à bola no terreiro

mirito passava seguia sem saber para onde 
olhando saudosamente para trás
saudades sem saber de quê
saudades porquê

os rapazes brincavam com as raparigas 
dizendo-lhe coisas de que todos se riam
mirito sorria por ver rir mas não percebia

diziam-lhe 
cresce tonto depois se verá

alguns namoravam um beijo às escondidas
mirito sentia e sem saber como se fazia ficava triste 
uma tristeza natural acompanhada da ligeira brisa do pinhal ao lado do cemitério 
onde ensaiava com jeitos e trejeitos os beijos da moçada

imaginava uma bela moça 
como vira num jornal da venda 
e que lhe valera um pontapé no traseiro 
por olhar coisas de gente normal

até a formiga-tonta já tem catarro disseram

mas a bela loira de cabelos longos 
não lhe saía do toutiço
afinal só olhara para uma fotografia suja de vinho amarrotada de um jornal que parecia tão antigo como ele
ele que tudo daria para ter aquela fotografia 
como seria feliz namorando-a com os olhos todas a noites no seu leito de palha 
seria abençoado se a pudesse beijar ainda que papel

essa loira de quem se via um pedacinho dos seios estava-lhe na memória
enchia-lhe a mente inocente
não saberia o que fazer 
talvez mexer de mansinho na carne luzidia
talvez um beijo na face rosada 
ou na boca de dentes brancos

o restante desconhecia 
apenas sabia o que nas partes baixas sentia e por instinto tão bem lhe sabia

melhor lhe agradaria de outra maneira 
dizia-se em segredo na venda ao domingo
que por ter bom ouvido ouvia e ninguém lhe dizia
ela havia de o ensinar 
quem sabe se hoje à noitinha 
e por acaso 
aparecesse na curva deserta da estrada

e sonhava sonhava o pobre louco
que nem à escola fora
a bola jogara
na ribeira pescara
e nunca amara


e mirito crescia enquanto o sobretudo encolhia


pobre miro pobre louco
coitadito


a sua cabeça rodopiava como carrossel
da feira de s. bartolomeu

e via 
via coisas estranhas que o assustavam por momentos e rapidamente esquecia
coisas do diabo 
coisas assanhadas 
arrepiadas
que o possuíam e arrastavam pelos caminhos tortuosos na direcção de uma malga de vinho


ó meu mirito sofres tu e sofro eu


à noite 
no palheiro 
via demónios
uns sentados 
outros dependurados nas vigas de madeira velha e empenada

das frechas do granito amontoado 
soltavam-se espectros luminosos em riso rugido

demónios 
diabos 
fantasmas 
aparições 
diziam em voz rouca 
em gemido tremelicante
miro tu és doido varrido 
bêbado 
vai-te     vai-te 
vai-te     não durmas 
não te deixaremos dormir 
vê     vês 
vê a mulher loira de longos cabelos entrançados 
é feiticeira 
de todas a mais bela 
de todas as aldeias que conheces
vai-te enfeitiçar
vai-te encantar
serás um sapo e os rapazes irão pôr-te a fumar a fumar a fumar
até rebentar

foge miro 
foge 
foge para as sombras da noite
deixa-os na tua corte 
que fiquem com o curral
que nem teu é

que durmam na tua palha 
nos panos velhos cor de carreiro poeirento


carago     filhos de uma grande cabra 
que me não largam
raios os partissem 
almas de trinta diabos
tanto bento 
tanta bruxa 
tanto filho do demo
e da puta 
tudo para me causar tormento

e mirito noite dentro 
quilómetro a quilómetro 
ia da mata ao sobral 
do sobral ao ribeiro 
do ribeiro à aldeia-nova 
sem demora e tento
até raiar o primeiro raio de sol 
até ao sol nascente

quando o sol nascia o canto dos pássaros abafava o vozeiro dos diabos com figura de gente

catano     uma coisa assim     calai-vos deixai-me não vos quero ouvir almas do demónio

miro desesperava
miro gritava
carago     inde-vos


a venda abria e miro à porta da taverna 
olhava mudo o taberneiro estremunhado  
que já sabia ao que vinha
que já lhe conhecia o vício
  
um copo por deus para matar os demónios
um copo por nossa-senhora 
um copo para suster a agitação
cinco tostões para matar a sede 
tostão a tostão para matar o demo

pelas alminhas que com jesus lá tem 
pelas que no velório aguardam o purgatório 
com barrabás e o outro ladrão

vai-te daqui agoirento 
vai-te     vai-te 
que a satanás encarniçado 
nem vinho nem pão 
pede-o a judas que é teu irmão

um copo pelo seu descanso 
por alminha de sua mãe
e de seu pai também

pela mãe     pela mãe     pelo pai há pouco falecido 
agora sim tocara-lhe no coração

toma alma-do-diabo 
bebe

mirito bebia um dois ou três e ia sem direcção sem destino sem querer


pobre casmiro pobre louco sem-tostão
miro pobre-louco a quem as bruxas não deixavam sequer adormecer


em pequeno passava à minha porta 
ele já homem 
eu rapazito

tomava da gaveta alguns tostões 
tia cândida via e fingia não ver 
fazia a vontade ao filho-sobrinho 
que queria ser padre  
e tanto amava 
pobres 
loucos
velhos 
doentes
animais

zéia que vais fazer perguntava
nada de mais 
vou ver o mirito que me chama do caminho 
e logo  interrompia as orações ou fechava o livro de horas

dois três copos de vinho 

mirito cantava agradecido sabendo que aquela porta lhe estava sempre aberta 
enquanto eu ingénuo o olhava embasbacado na sua dança estrada fora braços abertos a rodopiar voz rouca a soletrar língua estrangeira

adeus mirito
amanhã passa por aí
eu peço à tia
e mirito sorria
e eu não sabia que sua alegria
e minha felicidade
nada valia ao agravar 
a doença de que padecia

adeus mirito 
pobre louco
até amanhã 
até outro dia
à falta de capão 
cebola e pão
à falta de um tostão
volta     volta que te darei 
do vinho da tia 
palavra 
tiro-o da adega 
às escondidas
ninguém vai ver 
ninguém vai saber


o sino toca para a missa 
ou é para o terço
não estou certo

eu cresço

mirito mais velho
o sino tange uma morte

eu estou no sul
mirito no norte

o sino toca a rebate
arde a encosta poente do vale

o incêndio belo ameaçador
já lavra no monte

eu estudo para doutor
mirito cada vez mais doente

o sino toca ave-maria
eu já não rezo

mirito o tonto não dança
eu já não vou à igreja

mirito com dificuldade anda
o sino toca toca sem cessar
e aquele pobre diabo está-me na alma
na saudade que o vento frio da serra traz
para as paredes negras da cidade

saudade que rói e dói


mirito pobre louco
eu também sofro


noite de inverno 
temporal
miro já não tem as mesmas forças
nessa altura eu vivia num jardim de betão com uma nesga de céu acorrentado à liberdade
miro está cansado eu tenho depressão
o sobretudo cada vez mais rasgado deixa passar frio chuva neve à roupa mais interior do esfarrapado
o vento bramia
vergava ramos de velhas árvores 
retorcia as novas há pouco plantadas
o vento gemia
nas sombras dos olivais 
nos espectros das nuvens baixas
fazendo rodopiar as folhas caídas

uma chuva fina e fria 
que se entranhava na miséria 
molhava-lhe a alma

miro continuava 
miro caminhava
tinham-lhe dito 
não te metas ao caminho 
mirito não os ouvia 
vou para a mata 
vou dormir

caminhava contra o vento 
que rodopiava

começou a nevar

já não havia demónios diabos 
almas de outro mundo
eram anjos alvos a bailar ao som do vento
sinos a tocar ave-marias
arcanjos que sorriam e o afagavam num leve arremesso

a neve caía caía em desconhecida melodia
melodia que nenhum bach comporia
e vestia-o de branco puro

miro parecia uma pomba no escuro
um dominicano em êxtase de alegria

mirito pobre louco sorria e ria
dançando ao vento e à neve
com anjos e querubins de verdade
e jesus menino que assistia enternecido a ver
tanto amor e liberdade

chegado à curva dos sonhos
da loira encantada
miro cansado
deixa-se tombar no valado
exausto a dormir
a sonhar a sonhar com o amor
que sempre lhe fora negado


os anjos entenderam
jesus concordou
maria sorriu
melhor seria fazê-lo ascender
mirito faria o céu feliz
haveria festa e alegria 
uma felicidade imensa
bondade e inocência
de homem que sempre fora petiz

ave-maria
ave-maria


miro pobre louco meu bom amigo


casmirito morreu no inverno
mirito subiu ao céu entre anjos e arcanjos



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