sábado, 29 de junho de 2013

502. O ÚLTIMO DOS NAVEGANTES DO SONHO











costumava sentar-se nas rochas passajadas e batidas por golpes de mar     umas vezes tão terno     floco de neve nas mãos da criança marítima     outras violento soldado com a mão direita a tremer o gatilho da morte 
só custa matar a primeira vez     a partir daí matar e ver morrer a quem não se quer é tão normal e arrepiante como amar corpo que se não conhece
parecia estar cansado da vida dos homens na marina-passadeira de pernas sapatos roupas de marca e sorrisos elegantes e asnáticos     raramente olhava as fêmeas em cio exuberante e os falsos navegadores e quando olhava o seu olhar atravessava carne vísceras e ossos fixando-se num além indecifrável
via-o do meu veleiro quando nas noites de luar preparava o aparelho para soltar as amarras da mente na vastidão das águas pintadas de escuro azul
o seu rosto era sempre o mesmo     rugas torneadas pelo sol da angústia leitosa 
pouco lhe interessava a ferida que o meu pesado patilhão abria no coração do mar fazendo-o sangrar     as minhas velas lembravam-lhe as asas duma gaivota esfomeada  
nunca quis partilhar uma viagem ao mar profundo     seu olhar circular envolvia todos os oceanos com seus cabos tormentosos temporais e calmarias 
horn e boa esperança

hoje não o vi
dizem-me que morreu
o último dos navegantes do sonho
reduzido a cinzas
sepultado no horizonte do seu olhar

ouve se me ouves
partirei do teu lugar
mas não morrerei em terra
morrerei no mar
e de todos vós
que amo e amei
vosso nome 
a maiúsculas escrito



501. CRIADOR INDIFERENTE





há flores no espaço     o teu corpo cheira a rosas molhadas pelo orvalho
corpo de estanho
em favo de mel moldado
reina a ordem no universo indiferente ao seu criador
deus feito carne
que semimorto de cansaço
sua criação sublimou
corpo molhado possuído por garras azuis     arrebatamento em cascata     mais quero mais     dizes     fundo     toca-me nesta noite serena de outono 
atravessa a ponte da saudade 
e nada no meu desejo a vinho perfumado


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500. DE VERDE




Bouguereau




verde é teu manto
verde o mar dos amantes
verde em que te escondes

verde a cor de teus olhos
verde o tição do amor
verde a feição da traição

verde te visto
verde te alcanço
verde te dispo

verde tudo o que vejo
verde o que em ti amo
verde o amor que beijo

verde partes
verde te desenho
verde te sonho

de verde vivo
de verde padeço
de verde morro




499. ENCOBERTO





erro atrás de erro no caminho da estreita via     retorcida a senda     torta e entontecida     não paro     os passos cambaleantes transportam-me para um outro mundo de multidões exaustas pelos pecados que me atormentam nos nós dos dedos 
e tu senhor que devias vigiar a macieira dos frutos carnudos e as arestas limar navegas na barca da terra árida mudo de compaixão     estás perto de tanto e longe de tudo 
junto a mim bebes das minhas águas comes do meu ázimo e conheces-me     desde o princípio dos tempos decepcionantes 
vês o meu pranto submerso em remorsos     os insistentes delitos     diabo     porque não arremetes contra a lança do desespero e me soltas os parcos cabelos que não alumiam a noite nem ao dia concedem alegria 
mostra-me a tua face ao escurecer para que durma à sombra das estátuas vivas da avenida florescente 
não é em vão que te peço e me despeço ao adormecer nas ondas do mar sem fim e do céu cruel     perco-me sem ti 
de que latitude parti eu que me desconheço     em que longitude sofro eu que me despeço 
tudo é deserto areias sem fim 
um coração que sofre arrancado brutalmente ao peito ferido     já nada sei     a noite aproxima-se e eu sofro 
e tu meu amigo como me és encoberto


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498. AS CEM MIL COLINAS





uma mesa giratória no canto da sala água-marinha
um pássaro de plumas marfim escuta estático a voz de falso tenor do piso inferior

açaimada aos anos percorridos no breu pela velha estatueta de bronze
está a boneca de trapos com o sorriso aberto à brisa que vem do rio 

a senhora idosa tão inclinada e absorta 
fareja a tiritar o local do crime original
sem a remissão de bula expiatória por discordância com a divindade irada

a grandeza melancólica dos espíritos peregrinos
eternos descobridores da maresia silenciosa e retráctil
assola as horas tão vastas como lendas conspícuas

os vales verdejantes enegreceram
e sobre as cem mil colinas nem uma águia real ousou voar


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497. SARA





noite na sé
a ceia que nem sempre tarda
aos pombos recolhidos tardava
e aí
num amor de forte instinto  

dividimos nossas almas
na insolência do encontro
decisão de inevitável união
quase canibalesca
de espíritos insatisfeitos

a noite agarrou-se com firmeza
à pedraria da catedral
a acender os últimos eléctricos
enquanto nos afastávamos 
afáveis e desconfiados

nas ruas desertas
que desde sempre
parecias conhecer
olhavas-me pelo canto
de um olhar negro

inundado de paz 
onde havia almofadas 
pelo chão estendidas
com gente descrente
estampada nos cantos

na sala gente
vestida de desejo
verdejava palavras
rastejantes
que te procuravam

almofadas escarlates
azuis de céu ultramarino
e talvez
de âmbar desmaiado
talvez

mas só tu existias
na orientalidade graciosa
como exististe na
longa noite africana
de volúpia contida

por tanto tempo
que nenhum relógio 
pode medir
nenhuma ampulheta
em si conter

minhas mãos
de olhos fechados
pentearam suavemente
os cabelos lisos
de tua alma límpida

absurdamente límpida

não era sexo
ou era sexo
sem ser sexo

noites estranhas
de delícias imponderáveis
no silêncio 
da árvore contemplativa

espasmos rítmicos
de ramos orvalhados
beijando os lençóis brancos
as rendas de teu perfume
e o sândalo dos sentidos
efervescentes

o vizinho perguntou
o namorado já não vem?

os roucos gemidos cessaram
a alegria do sangue nascente 
laqueou o flanco inerte
a mente dolorida 
adormeceu no leito do sofrimento
onde os sonhos
são breu de noite sem fim

as feridas abertas
em puro vinagre
sararam
uma não 
sara 
essa irá a morte
sará-la com suas mãos
de veludo e amor
gentil na voz
nos gestos de vinho doce
nos suaves beijos



496. A UMA ESCRAVA





a uma escrava


do teu corpo
quero o vinho
e o pão

da tua alma
o sopro dócil 
do amor

a ti te compro 
estupro cinza
da dor 

agora teu amo 
a ti te liberto
do passado e do presente

a ti te quero
desejo e desespero 
e se te apeteço

peço agora servo
o milagre da transformação



495. MIL BEIJOS E UMA NOITE TE PEÇO





os passos da mais bela de todas as mulheres     a doçura da voz     brilho dos seios hirtos     pescoço perfeito de beijos vorazes     anca modelar pernas altivas     sexo doirado
mil beijos e uma única noite te peço


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494. NOTRE-DAME









o sol morre lentamente no horizonte
coberto de paredes de betão
sombras do dia arrastam-se na pequena ilha da cidade
a praça deserta
a contemplar a massa gigantesca de pedra
duramente aparelhada
e a maria dedicada

para além da ponte de apaixonados e suicidas
os pequenos bares aconchegantes
bystro     bystro     bystro
beijos rosados no jardim do luxemburgo
com st michel a ver e ouvir pesado e pisado por caminhantes da vida abstraídos
a animação
os versos e aforismos dos cerebrais embriagados
onde tudo é demais
quartier latin povoado 
de amor imperfeito
perfeito julgado

notre-dame
a visão de dois corpos
em chama viva de amor
dois rostos transfigurados
em incandescente paixão
passos lentos 
de mãos apertadas
dedos contra dedos cerrados
uma única verdade
a penetrar na catedral vazia
casa de santa maria

no altar
nos frisos
esculpidas as faces de santos
vivos
no ar o som da solidão
das palavras macias de amor
da antiga adoração
canto gregoriano
a silenciar a oração

mãos apertadas
percorrem a ponte
dois corações em êxtase
olham o rio que corre
cintilante
sinfónico
cantante

mãos que se apertam
mais e mais
um espasmo
outro
a divina sensação
do milagre do amor
repartido em orgasmos
sucessivos
de pão e vinho
aos dois distribuído

e o sena pára 
abismado
contraído
de gozo alumiado

um outro arroubo de luz
o mesmo que a virgem santa
na cidade de nazaré
teve quando concebeu jesus



493. CIÚME





noite pálida de outono
no meu peito o teu coração repousa ao luar
passos de deus a caminhar 
por campos lavrados

ponho-me a cismar
enquanto teus lábios observo
quantos homens não beijarei
quando a ti te beijar

e penso
poisando de leve minha mão
nos teus olhos adormecidos
que de alma tão casta

apenas brota pureza
e só pode ser falta ou pecado
o ciúme que sinto



492. A CIDADE BRANCA DO CUME





tarde comecei a escrever versos
uma cepa de maus poemas entrelaçados nas videiras bravas do sem-sentido     uma merda eu sei
já os havia escrito nos cabos emaranhados do cais do esquecimento letárgico 
das pedras gastas do ancoradouro norte 
esses
nem bons nem maus
dos quais não me recordo do mesmo modo que a sé catedral não relembra as promessas angustiadas dos aflitos inscritas nos altares e santos gastos por orações douradas

escrevia-os e lia-os 
enquanto tu no teu distendido pêlo fulvo interrompias vivaldi para os ouvir
os teus olhos iluminados desaprovavam a dissonância de grande parte das frases encadeadas num arremesso
outras brilhavam nos teus olhos luzeiros de universo
olhos compassivos sem mágoa 

adormecias ao som das quimeras ditas num sopro
das viagens reais e ilusórias da minha criação polvilhada em múltiplos seres     nunca soube ser um só
e tal criança brincavas infantilmente com as imagens 
das garatujas
ficando o meu mais profundo ser
a velar por ti horas infindáveis de espanto

qualquer movimento teu era uma palavra redonda perfeita
qualquer olhar nocturno um canto à fé dum mundo-sem-esperança
a elegia do olhar vagabundeava na nossa cabana com vista prateada para o rio verde-esmeralda que nunca conseguiste ver

dia noite noites dias meses contigo a olhar 
reprovando as lágrimas ensanguentadas do momento pontiagudo do desespero
porque a paz já nascera nas paredes encantadas do mais rico dos palácios
a cidade magnífica do amor estava aos nossos pés 
poço de água pura inesgotável

apenas te vi chorar uma vez eu que tantas chorei e senti a fraqueza duma qualquer erva a vibrar no caminho
partias para o reino da morte e eu verdugo havia indeciso assinado o veredicto
pedi-te 
não chores
uma parte da minha alma vai contigo
a outra saberá onde te encontrar

quando juntos entrarmos vitoriosos na cidade branca do cume


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491. O ESCORRAÇADO





pela estrada um mendigo
roto e esfarrapado
a arrastar-se no cajado

a cada porta pede pão
um tostão
por amor a nosso senhor

as portas calam-se
as janelas fecham-se
e ao desgraçado chamam ladrão

sem que saibam
que é cristo menino
com fome e frio




490. À FLORBELA ESPANCA








à florbela espanca


chove
é outono
os campos tingem-se de canela

uma fotografia
antiga
a sépia do tempo
a dela

nunca te vi
não te conheci
apenas o que escreveste
ávido li

e voltei a ler
(quantas vezes te reli)
e a cada nova leitura
no medo da noite profunda e escura
adormeci em tua alma rubra
com vívida fotografia
a meu lado deitada

nasci
não recordo

tu morreste
antes de eu ser gente

agora
olho-te
a face branca
olhar penetrante
o colar pendente
a fina mão 
em macia invocação
súplica
de coração em chama
lábios doados
à paixão
em vida ausente

como te quero
alma que meu peito encerra
em túmulo eterno
diz-me de tua voz
que o amor vivo
que ofereces
tão real tão ardente
a mim me pertence

como te quis como te quero

nos dias em que a dor me fustiga
sinto a tua presença
e almejo amada
um amor divino
tão forte como a própria morte
e se porventura acharem que louco estou
de irremediável loucura
direi –
sim estou
louco de tanto te amar
louco de amor

olho-te com ternura
vivo em ti dentro de mim
apaixonadamente
e se alguém
alguma vez disser
que se não pode
que é impossível
amar assim tão perdidamente
morta que se não conhece
mente certamente
e se não mente




489. O VELHO PAVILHÃO CHINÊS





o velho pavilhão chinês enche-se de memórias
os longos cabelos ao vento do crepúsculo
desposam o sorriso róseo de teus lábios

usarás para sempre as tranças da infância?
há uma distância que me separa da tua inocência
onde nem o mais puro desejo derruba fronteiras

talvez voltes um dia a preencher os meus dias
no sono eternizado de poemas lavrados no coração
êxtase de uma noite inteira de quietude sem estremas

um amor para além das palavras dos gestos  
do tempo das exigências humanas


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488. CARROSSEL





olhemos     vejamos a mesma estrela o mesmo brilho de bronze no céu harmonioso     o dia está fresco a noite fria e da vida pouco nos resta
o carrossel gira aos uivos     ah como gira e rebrilha trajado de negro
a cabeça da deusa de oiro abraçada por um miúdo que esvoaça na frescura da nortada     à volta corpos de ervas preciosas estendem os braços fingindo tocar a dança circular da ave marinha do leão de papel e do elefante de patas ao ar poluído por gritos
como um bêbedo há um jovem que volteia sobre um barco enleado nas ondas corporais da rapariga em folia
uma velha ri
um cão urina
numa esquina dois namorados num
afligem-se os assistentes
espantam-se os passeantes
divertem-se os que vivem
o senhor prior
de passagem sorri
e o carrossel gira mais uma vez e outra



487. A TUA PARTIDA





parte-se-me o coração
em pedaços e estilhaços
na tua partida sombria
rosto impresso na vidraça

um único dia não há
em que me não morra a alma
e a cada noite renasça
mais saudosa e sofrida

na angústia da ausência
triste consome-se a vida
que súbito a morte me não dá
mas a pouco e pouco ma tira

de teu rosto a graça
apartada e escondida
beleza única só vista
por quem viu para além desta vida

e no amor mergulhou
sem tempo sem medida
e no outro se transformou



486. NOITE ESCURA





a noite é um convite ao banquete contemplativo
busco a noite escura de joão da cruz sem que a invente

não consigo fugir de mim nem ir ao encontro dos outros

as ruas desertas arrefecem numa chuva de dedos de areia
os sonhos arrastam-se pelas casas sonolentas provocando a madrugada dos desejos
que entram sem convocação no requiem das estrelas silentes

na pequena moradia do beco o ar rarefaz-se em bocejos
cor pálida e sombria da peste
a infectar a solidão do poema



485. LIVRO DE AMOR





um livro de amor
aberto no aroma 
das tuas mãos de marfim

li-o alto em mim
em horas de ardente febre
passos dados no destino errante

li-o em ti
virgem doirada
que na amargura 
o amor vesperal inflama

e se nas mesmas palavras
não estão os mesmos corpos
decerto está idêntico destino


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484. FAZER AMOR PARA SEMPRE





o leito profanado pelo frio está sereno posso dizê-lo
com a mesma energia que a cerejeira prenhe dissipa na primavera
mau grado o jugo terreno de que os deuses alucinados e febris se apartam ao sol-posto 
a cidade nasce para o inferno do prazer
estremece no ódio do passado na raiva do presente e no  terror do futuro
acendem-se as primeiras das últimas luzes
o espanto dos olhos roídos pelo enfado alonga-se nas casas de passe o passe
pergunta-me o fiscal do metropolitano praticamente vazio a penetrar os ossos da terra procuro-o
deve andar por aí como tudo e como todos 
afinal só quero chegar a casa recostar-me ler um velho poema de um poeta maldito
quando ainda faltam tantas milhas cravejadas de espinhos rosados
a salvação –



483. SERENOS COMO DEUSES





o céu está cinzento mas o teu corpo brilha ao sol
incendiando as florestas que te envolvem
tudo sucumbe à tua passagem
com as leves pegadas das sombras
a acariciarem as giestas de flor branco-puro

espero-te no lado sombrio da noite
o coração despedaça-se na dúvida do consentimento
e a mente obsoleta insensível
fervilha na lua doirada
a banhar
suave
dócil
as estevas

estou só
na solidão
sou a solidão

estou só
no mundo
sou o mundo

abraço os seios da eternidade contra o meu peito sofrido e esvaído
sulco com o arado das mãos os teus cabelos ondulados
graciosos a esvoaçar na quietude do espaço
belos e serenos
belos
serenos



482. LIBERTEI-ME DE MIM





libertei-me de mim
não sou quem sou
nem o que fui
nem o que serei

sou 
apenas

sou o amor
o amado
a amada
o amante

a força que nunca estanca
o rio 
o desgelar
que corre em teus olhos
no rumo do mar

sou o vinho e o trigo
da tua mesa