terça-feira, 20 de agosto de 2013

557. CONDENADO À MORTE POR CRIME DE AMOR









condenado à morte por crime de amor

nas mãos ainda o sangue coalhado e as marcas do velho punhal
naquela tarde de outono a imagem no fúnebre pinhal

tinha pousado entre grades seu olhar alucinado
dia após dia     ano após ano

o vento em mangas de camisa murmurava obscenidades
o azul do céu desencanto     angústia     dor


doce pensamento era agora o seu
a amada
que deus lhe deu
que deus lhe tirou
a ele que matou
bem que era seu

e deus sabia que ele o faria
sempre o soube     desde o princípio dos tempos
se não soubesse não seria deus

olhou para dentro de si     negrura     lamentos

então para que lha deu
a ele que agora gemia
mais por a ter perdido
que da morte o medo

as folhas também morrem e nos túmulos abertos repousam almas penadas
as árvores essas tombam-nas com o machado
e aos ribeiros cortam-lhes o leito por maldade

seu destino o inferno

na aldeia nessa noite haveria estrelas no charco     trutas em descanso     espectros de gente     mau-olhado     cavacas ao lume     mais um doente desenganado

     noite de insónia
     seria amanhã
     ao nascer do dia
     a corda a resplender

não há amanhã     pensou o condenado

e quando o padre o foi buscar para ser enforcado
rezando em latim
ouviu ao pobre homem silencioso e toldado

        matei o que mais amava
        não tenho mulher nem mãe
        matem-me pois a mim
        que em vida morri também


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556. O POVO TEM O QUE MERECE





foram-nos dados
governados por crianças

o povo tem o que merece

estão dispersos nas nuvens que sombreiam o rio de cristal
passa um carro amarelo com calças de cabedal     cor preta
cardado pela baeta


ah donzela de portugal
cruel é tua linguagem neste vale de ossos     fraguedo das lamentações

há para tudo um tempo
mas nunca conseguirás resgatar a morte dos que abandonaste no cais da adversidade
nem o dialecto da falsidade

o caminho para a estrumeira enche-se de cardos e espinhos bravos
aos eunucos estremecem-lhe as entranhas
os altares de folha de oiro devastados
insolentes ficam     os santos escorraçados

tempo de calar

a invenção do lucro corrompido
libertinagem insensata da natura do compasso
a chagar a penha sanguinolenta

cão que ladra não aferra




555. EM DOIS VERSOS O MUNDO INTEIRO





vale de flores
um dardo negro esvoaça do beirado

de sol a sol encontro o assinalado com a palidez da morte

homens de outrora saudavam o cuco com as suas enxadas
tão pesadas como canetas de tinta permanente 
vermelha a escorrer     

cai uma telha do cortelho

tinha sido um soldado exemplar
cruz de guerra de segunda
agora humilhado a cavar      vigiado pelo feitor de bata preta
sim senhor prior mas a terra é dura


ignoram-se paraísos
corações esmagados por ídolos de madeira
o peso da minha dor sentado na cadeira de braços triturados
roída por verminosos ratos

e as intrigas?

ouve meu filho     e tu meu amigo estelar     vive e deixa viver     rejeita a carcoma
quantas vezes mel ou é foda ou canelada
conada de palrador gerado em viveiro

que se erga o pregoeiro no meio dos corpos santos     se os houver

que levante as mãos ao céu quem as tiver

cinzeiro de prata efervescente     porteiro da morgue
não há quem lhes toque 

e o umbral da porta?
em dois versos se abrange o mundo por inteiro


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554. PERDA DA VIRGINDADE





enjeitando as raízes fulgura a débil planta

as candeias afoguearam a bezerra sacrossanta

avistámos hoje a filha dos céus     deusa da aurora     dos penitentes
atiçou o fogo dos mais deleitáveis manjares
e saiu na tipóia dos entes

radiosa a jazer no seu leito embriagado pelas faces brancas da brisa primaveril
revelou-nos a perda da sua virgindade
embrião enorme a varrer o pórtico do arco e flechas de terno amor

que frescura tinha o seu sorriso     esbelto seu sono
longos os doirados cabelos     nascimento de nova vénus

com as horas o galo cantou
sem tino     sem destino

canção de aventura no mar
voz límpida de água clara
fonte de harpa a tanger



553. PARA ANDRÉ BRETON





para andré breton 

as chamas que masturbam a colina     as locuções desprezadas pelos mestres     a rima paradoxal do sexo sem erecção
trabalhadores da construção em implosão     ilusão de um povo macerado em vinha-dalhos

quadros de gosto dissoluto em quarto de pensão     praça do chile     intendente     bairro alto de meretrizes e gays     
um broche no técnico     a marreca de algés jubilou-se
um pilrete num jaguar amarelo     a retrete pública dos desordenados     epiceno desnatural das borras rectais
olivais     jardim do império     onde navegaram tantos anormais     rabetas de profissão à tocaia      intimidadas as fêmeas sem fregueses
conde redondo disfarçado no trajar     ultraje ao elefante branco ali ao lado

putas à rua 
acompanhantes aos bares
casadas aos apartamentos  

o sol que se põe nas tairocas desprezadas no brejo     a noite que cai na cabeça quadrangular da menopausa
os amores clássicos     o acto procriador aéreo
o adultério na adega de tonéis aquosos     o furto do andar térreo 
três vinténs de puberdade esfaimada

homenzinhos de jaquetão de vidro e calça esticada de betão     piça ressequida abotoada aos fundilhos enredados     

cem poemas escritos na areia verde do sangue espessado
cem poemas por um cavalo alado
cem poemas por uma humanidade novel debelada por versos azuis     detonação da cor sem forma a gerar espiritualidade 
na arte senil e na literatura de cordel


não escrituro para supérfluos cabouqueiros de numerárias nem para donas de casa por branquear     rameiras de funil     
o marceneiro sempre disse que a mulher não é constante     
por muito séria que a tomem há sempre um homem qualquer trocado por qualquer homem     
qualquer ebanista é erudito nesta disciplina 

não havemos de permutar mulher por outra havendo ocasião 
quando as que nos trocam dissimulam genuidade na omissão da justeza vaginiforme     
seremos parvos     estaremos turvos ou laçados? 
viva la vie    
voilá     les femmes et son usage   

nada lavro que se não possa ler na missa de domingo onde os ternos coçados se passeiam irreverentes em bicos de pés     cristãos-submarinos na aflição à tona
beatas     ratas de sacristia numa fona     padres inadequados para consumo      bicos sacralizados por pastor beatificado 
cristo de encomenda patente em delubro
o milagre do santo sexo     sacramento de crianças nuas e acessíveis viúvas ao rubro 
as três tabuletas da trindade nos seios da sineira     alcova de abade incestuoso    


os poemas breton regalam-me absorvem-me o sono marcam a cadência ajustam o som da melodia ao contraponto burlesco da burguesia e das putas da freguesia
voilà     les femmes et sa chatte abusé

cão que late megera que lê     
les cornes du impuissant     governo do excremento

os meus estúpidos poemas afectam-me o adormecimento
são o meu prazer     ironia do destino     vossa espertina 

mas teu sono não     breton     estás seguro no teu jazigo
meu poeta
confidente



sábado, 17 de agosto de 2013

552. O LAGO SECO





a luz que brilha no meu coração apaga-se

das janelas amarelecidas vê-se o lago quase seco
os gemidos das plantas aquáticas cortam os ares
sibilantes

no quarto os lençóis bordados aguardam-te     um pecado nunca vem só
mesmo que perfumes e incensos floresçam na noite

sexta-hora     a madrugada dá os seus primeiros passos
um curto aguaceiro de verão cobre as vidraças de lágrimas
olho através delas
não há vivalma no caminho

o sono só acomete os corações apaziguados dos corpos exaustos


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551. PEQUENOS POEMAS





calor dos diabos 
a solidão  dos campos de pasto morto –
junto ao ribeiro um velho cavalo busca sombra

*

o coração é o centro de todas as sombras –
no cemitério da aldeia
um cão uiva à beira de cova hoje aberta


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550. A ALTERNADEIRA





olho para fora e vejo dentro

vidros que a noite mágica transforma em espelhos
assentos cortinados     um bloco de papel com mão que reconheço a escrever
e há as luzes leitosas da viagem reflectidas na bagagem
sofrivelmente dispersa pela carruagem 

pernas dependuradas nas sandálias
unhas pintadas de negro
a viajante dormita     curtos calções exibem as formas

alguém disse que é do alterne     outro do sobe-e-desce     puta convenhamos
não sei e pouco me interessa     que poderei eu saber?
talvez goste de foder     talvez goste do que nós tanto gostamos de fazer


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549. TEU CORPO REGOZIJA-SE NO MEU





teu corpo regozija-se no meu
em longas penetrações seguidas
noite a violar os vales de breu
com tuas coxas ainda húmidas

amante sem sono e fadiga num assim
libidinoso movimento de sublime anseio
algo que não se cria foi nascido em mim
no dia em que minha alma ao mundo veio

encontrar-te foi apenas a consumação
arrebatamento de águia em volteio
que ao aterrar de suas garras fez mão
e do bico adunco delícia do meio

quando te tenho com sofreguidão te amo
se partes fica-me o corpo na alma vazia
a latejar a sombria imagem de orgasmo
que não vem nem na noite nem no dia

morre a jornada com o sol-pôr da esperança
morre minha carne nesta terrível indiferença


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548. PARTIRIA CONTIGO





trovões nascem das nuvens     não entendo o correio    não é de quem deveria ser     anos de anseio
inconformado debruço-me no molhe do cais
prateada a rebentação nos penhascos ameaçadores
pobres pescadores de amor lunar

pelas encostas do céu rolam lágrimas 
são de sangue as mal-afortunadas
mais salgadas que as dores marítimas a desovar suicidas

partiria contigo     para qualquer povoado indemne à fala
tudo seriam idas     sem volta

é tarde     fiz com que o fosse como se o tempo não passasse em arrebatada corredura por meus cabelos expostos ao vento da maré-viva setembrina
purpurina boca     lábios de cristal     dedos de sândalo



547. O MUNDO É UMA FARSA





geada no vale     quatro horas da madrugada

batalha no campo ensanguentado de amarelo-escuro
pisado o verde seco e os membros dos amputados

o combate dos leões     cristãos ao circo     damas ao bufete
o mundo é uma farsa     a alma do nado-morto uma tábua rasa por baptizar

um dia o meu corpo será pasto de abutres e milhafres
enterrado     cremado     (e se for cromado?)     sem que tenha sido crismado
(o sacramento da confirmação     ratificação do apedeutismo) 
ave dos oceanos em azul retalhado

que aproveita
se me findo
e o mundo acaba

o pouco me basta
o que é demais sobra e mata     

aguardo o sono o cansaço 
jazer no dorso da égua casta


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546. MENTIRAS DE MULHER





mentem mais mulheres viciosas
castas calam e as prendadas
alam   todas se dizem virtuosas
queridas dóceis fiéis amadas

e nobres amantes de seus amor
que fingem belo perfeito e eterno
mas fixando com astúcia indolor
em crédulas cabeças duro corno

acrescentado no dia-a-dia
com seu jeito especial de jurar
quando o coito do meio-dia

é de todos o mais apetecido amar
e como quem mais jura mais mente
existe sempre varão que as contente


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545. QUANDO A PAZ ABALA





encerra-se a golpelha ao rolar das trevas
não desaguam pensamentos nem se ausentam

o corpo cadavérico quase extinto
a alma lívida quebra liames  

o aposento aquieta-se
o momento eterniza-se

esvazia-se a razão
corta-se a atadura

a mente serena
na dulcidão do letargo

é sumo e é pena
do que vem amargo

quando a paz abala



544. CRISTO POR UM DIA MÁRTIR POR UM MÊS





a terra fecunda está receptiva     de seu nome maria     sabe a bainha estelar o melífluo lubrificante dos lábios 
coruchéu a receber o alimento minável vindo do firmamento
ah o céu das aves     a quinta jornada do criador
campanha do conquistador do mundo

na serrania a fixidez mística das urgueiras inibe a semeadura do pão     assim estou eu desabrigado e sem querença     patético      sublimemente emparvecido
raiz de torgal sem usança

ignaro ao sol-nascente
desperto ao crepúsculo 
enclaustrado na noite

em mim a
gentileza     docilidade     humildade
de um sarrafo avelhentado

ser humilde     ser humilhado
cuspido por cima
que tocante     dá-lhes a outra face asno
já agora cristo por um dia
mártir por um mês     esconjurado por uma vida


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543. ESCRAVOS DE PORTUGAL





age a natureza pela paciência     como é estável e firme nas suas persuasões     capciosa     caprichosa     bicho-come-bicho     gente-come-gente     e a deus não lhe dói o dente          

dragões voadores planam nos céus     temente um tenente de cavalaria monta um cavalo desossado
por cima dos ossos de nossos antepassados 

os que voejarem para altezas inóspitas e ignotas
renegando a prudência perderão a constância capitulando no vale dos mortos     

ah venezas submersas de malfeitorias     

amásias de ancião

o mais penetrante do abismo cavado e negro     profundez da escuridade     enviesados retábulos de infernos ancestrais     
na mão esquerda o purgatório que a direita se afunda na lascívia     

feitoria de são jorge da mina padroeiro das escravas traficadas     violação em terras de portugal 

lagos     mercado de escravos     leilão de dentes e desdentados     cem moedas por uma virgem

sempre fomos negreiros e mendigos     bastardos históricos e delinquentes geográficos     o que haveríamos mais de ser?

somos o que fomos  

aqui ficam os desacautelados aferrolhados


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542. ILIMITADA IMAGINAÇÃO





a minha idealidade supera a do cosmos     vai muito para lá
tão longe quanto a de deus     mais longínqua
tão perfeita quanto a do criador     mais ultimada     tanto que outra como ela não há

daí ser poeta
um péssimo bardo     é certo
mas poeta



541. HORA DE ORÇAR





sombras chovem descontinuidades enquanto me movimento no precinto sem tecto     


há um santuário doirado efervescente no fundo do coração em chama viva que erijo

um poema em cada verso por rimar


hora de orçar o alento    tempo rijo      marear em águas temperadas na robustez do costado

fenda na alma tapada com estopa alcatroada 


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agonia que corrói as entranhas     momento azul

a tarde não deslembra o crepúsculo matinal     as velhas     vacas amamentadas pelo suor dos ardinas
basculham a sudação sobrenatural das marafonas atlânticas


surdina da fome de mar no tentáculo ofendido em seus tendões  



as nuvens chovem no meu movimento 

quando paro     ressaca nebulosa de vaga paradoxal
anelo de temporal


veleiro expirante na rota impossível discordante aos alíseos dementes

dedos de mareantes colados à cordoalha disforme 
a partida e a chegada dos cavaleiros     bandeirantes da decrepitude


descobridores do entejo



do tejo parto     imagem de nossa senhora dos navegantes à proa

sem saber se retornarei ou não


pela torna-viagem uma loa






540. SE FALO VERDADE JULGAS QUE TE MINTO





se falo verdade julgas que te minto
se minto o que digo achas verdade
perto de ti se a alma ardente sinto
pensas-me ausente nessa saudade

não sei que diga que prova de amor te dar
cárcere de amor ou antes plena liberdade
com que forte ou lasso abraço te estreitar
algo que bem vá para além da falsidade

quero ver-te tocar-te quero-te amar
teu ser de corpo e alma a cada alvorecer
ser em teu peito manhã de luz a nascer

nos teus seios redondos água límpida a correr
aos teus olhos imagem de imaculada beleza
a fenecer em feliz noite de magnífica pureza


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quarta-feira, 14 de agosto de 2013

539. UM VELEIRO NO MEU ESPÍRITO





movimento diurno da provação     fora a nortada fustiga o mar encapela-o de cinzento com a verdasca ressequida dos últimos guerreiros

um veleiro no meu espírito
uma quimera em meu estreito
arbítrio imponderado
corpo que em sonho me tenta
em pobre verso lírico
depressão sanguinolenta
escolha adiada

logo haverá luzes no terreiro e sonhos com mulheres de diamante     bainhas talhadas por deuses em cópula ungida a mirra

o som de mozart inunda o aposento
mozart não é gente é sinfonia ou quarteto     mozart não existe     a sua música sim
o mesmo me irá acontecer a mim
permanecerá toda esta palha humedecida sem préstimo aguardando a queimação

uma escala de fá sustenido alaga os corpos irrepreensíveis da aparência de meretrizes e das filhas dos deuses que penetro no sono rudimentar de ancestrais desejos

a alma ferreamente apertada por cadeias de aço detona     escuto-lhe o impulso     que mais hei-de eu fazer 
que mais poderei querer?

a carne     o sestro que encandeia borra de negrura a mantilha nívea da probidade adormecida em suave leito azul-celeste
enquanto o vento ronda para leste


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538. PARA CADA OCASIÃO UMA ORAÇÃO





este momento de rendição enobrece-me

entrego a minha carne às famélicas águias     sou seu precioso alimento seu prazer     seu orgasmo selvático no membro extático

para cada ocasião uma oração
não evoco

o anelo evola-se para ressurgir na tarde ociosa
a noite cai perfumando os ares
a mente esvazia-se
a agonia vai-se
por agora



537. ESTEJA ONDE ESTIVER AÍ ESTARÁ MEU TEMPLO





esteja onde estiver aí estará meu templo 
esteja com quem estiver aí estará meu irmão
estando só estarei no mundo
estando no mundo estarei só
nele sempre
seja na virtude seja na imoralidade

não há crescimento ausente de sofrimento
nem alma incólume à leviandade


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536. A ALMA NELE ELE NA ALMA





a alma nele ele na alma saboreando-se mutuamente no amor que se dá e se recebe

na presença súbita e no padecimento natural da ausência
no entendimento do enlace ou no desentendimento do abandono
a aceitação de sua vontade feita nossa
desígnios incompreendidos de pobres mortais 

qual a minha mão direita qual a esquerda?
não sei     foram-me comutadas nas horas da infância
daí a irresolução
peço a noite calada     a mudez da alma     o dumo selvagem

não me furtem a suave escuridão     



535. FORNOS DE ALGODRES





a gare     fornos de algodres     onde sopra a brisa da memória
depois de uma semana de retiro a canícula percorre-me o corpo embevecido pela visão dos carris lustrosos

ninguém no apeadeiro     apenas o silêncio da solidão e o leve sopro da aragem nas folhas ardentes da vegetação
traves protegidas por óleo queimado gemem ao sol postado à meridiana     dezenas de vagões estacionados aguardam a carga que tarda
a minha vontade     mimosas que oscilam ao vento oscilante     partida que é chegada chegada partida     
vagabundo da vida     será esse o meu destino?

penso nos nossos projectos
nas forças debilitadas pelo desapontamento     

gostaria de retornar ao meu quarto longe do murmúrio da cidade     sou lacedemónio     
as luzes do mundo já me não seduzem
vou e quero voltar na urgência de alma que se rasga e fragmenta


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534. RETIRO ESPIRITUAL





retiro     
peço     de nada serve pedir a quem melhor do que eu sabe o que me convém
o almejado atinge-se em resignação
puro amor ao amado dedicado

o que se esconde pode atingir o que está escondido
longe do mundo dos desejos das aflições da trivialidade e mesquinhez     de guerras e contradições
quem o tem tem tudo

aquele que mata a alma aniquila a eternidade     morre-lhe a verdadeira vida  

paz ao seu nada
     

quando entrares em ti fecha as portas     quando te esconderes que estejas deveras escondido     quando no mundo no mundo estejas

nesta vida nada há de mais dificultoso do que o encontro dos que se escondem no âmago do arvoredo 
mesmo o que por parco período se esconde para alcançar o eternamente escondido

as árvores imensas escurecem o solo o canto das aves exóticas obscurece a voz do que em surdina se apresenta 

a vegetação disfarça o trilho


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