sábado, 29 de junho de 2013

435. TIA CÂNDIDA - SOBRAL PICHORRO





olhei-os como sempre os olhei     vendo-os como são e como serei

o lar onde não deverias estar
olhos de água pura a cintilar

o forte odor a morte abarca o ar leve e a respiração translúcida das paredes cabisbaixas

há mesas soturnas banhadas de idosos a reter as memórias do passado e os acenos amplos dos espíritos mortiços que descobriram o sorriso descampado dos aposentos velados

todos sabem que vão morrer
ou quase todos 
e que tu também partirás
mas
sorriem-te nos teus 98 anos
e tu sorris
e vives
na paz da canção
dos beijos
dos votos
de longa vida
de um dia a dia feliz 

és a mais velha de todos os que aguardam pacientemente a derradeira jornada       
eu o mais novo
canto e beijo-te
peço-te em silêncio que vivas
assim
sorridente
coração inocente de criança a extinguir-se placidamente

dá-me mais dois dos teus anos
depois pedir-te-ei outros dois
e outros tantos
não partas     fica comigo

sonhemos ambos com os vinhedos a florescer
com a brisa nos pinheirais a reverdecer
com o lagar vivo no outono
vinho a ferver na alma
e com as framboesas 
que crescem no pátio
sombreadas pelas laranjeiras

sonhemos ambos
nós e mais ninguém
juntos e em segredo
neste teu dia de anos
que nunca irás morrer
ou que se a morte te chamar
ao temível e doce degredo



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