olhei-os como sempre os olhei vendo-os como são e como serei
o lar onde não deverias estar
olhos de água pura a cintilar
o forte odor a morte abarca o ar leve e a respiração translúcida das paredes cabisbaixas
há mesas soturnas banhadas de idosos a reter as memórias do passado e os acenos amplos dos espíritos mortiços que descobriram o sorriso descampado dos aposentos velados
todos sabem que vão morrer
ou quase todos
e que tu também partirás
mas
sorriem-te nos teus 98 anos
e tu sorris
e vives
na paz da canção
dos beijos
dos votos
de longa vida
de um dia a dia feliz
és a mais velha de todos os que aguardam pacientemente a derradeira jornada
eu o mais novo
canto e beijo-te
peço-te em silêncio que vivas
assim
sorridente
coração inocente de criança a extinguir-se placidamente
dá-me mais dois dos teus anos
depois pedir-te-ei outros dois
e outros tantos
não partas fica comigo
sonhemos ambos com os vinhedos a florescer
com a brisa nos pinheirais a reverdecer
com o lagar vivo no outono
vinho a ferver na alma
e com as framboesas
que crescem no pátio
sombreadas pelas laranjeiras
sonhemos ambos
nós e mais ninguém
juntos e em segredo
neste teu dia de anos
que nunca irás morrer
ou que se a morte te chamar
ao temível e doce degredo
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