terça-feira, 3 de junho de 2014

699. AMOR REAL




barreiras azuis debruadas a marfim avelhentado

beethoven apura a diminuta orquestra no canto do salão purpureado

um pagode de madeira dourada aformoseia a porta das traseiras     um flautim ouve-se ao longe nas suas notas agudas     comprime-se o coração     a felicidade do novo veleiro oceânico na doca do bom sucesso     a infelicidade da partida     angustiosas luzes no firmamento pestanejam     

quem estará a bordo ao findar da madrugada?
     
quem estiver não vai voltar     
farol a abalroar a imensidade do abismo com os seus dedos prateados
e para quê? há um tempo de partida e outro de chegada
e o reencontro é mais doloroso do que a separação
nos dias que velozes se ausentam

uma embarcação ligeira faz-se ao mar     decerto pescadores
ansiedade desta noite
sem princípio nem fim

com lentidão avolumam-se vorazes saudades     
dor     lágrimas       
nenhuma oração te irá trazer
nem súplica nos fará reviver
os dias esmeralda do remanso
a lavrar incessante o amor

aguardarei pela madrugada     cansaço deitado ao lado do corpo em chagas     no orvalho matinal ressoará a tua voz
ouvirei o ribombar dos motores     irei sentir o sono dos viajantes com as cabeças vazias tombadas nas asas cinzentas     as mantas      as almofadas     o enfado
a alma constrange-se     o ventre dói     a escuridão não se dissolve
nada tem sentido para além da reclusão     sentido que se perde nos ponteiros do relógio anacrónico das gerações
tudo procria o véu amargo da ilusão

árvores que ardem na floresta     jasmins que murcham nos jardins     gaivotas que planam em terra     eiras de raparigas desertas     coração do temporal
sudoeste de tempestade espiritual     melancolia nas nuvens cortadas pelo aço da ausência

o que é que me irá trazer o dia de amanhã?
que importa se alegria se tristeza vida ou morte se depois da borrasca a calmaria na demência da solidão     vida nas lajes polidas da eterna estação dos deuses embriagados

um movimento surdo arrasta-se penoso na mente     que interessa ou pode interessar o corpo quando o espírito se queda doente?
o sono tarda     movimento contrário aos ponteiros corroídos pela maresia     para além dos muros do terraço o tejo sobrevoado     invenções demoníacas da lonjura     máquinas infernais do apartamento

por ti já não clamo
     
para que inventaste tu o amor deus de moisés     mirra e aloés esbanjado na corrente da maré     padecimento dos que no ventre da sua mãe juraram não voltar a renascer

não voltarás
que importa     se já vivemos um presente um instante transmutado em eternidade

a manhã desperta no seio de uma fadiga abençoada     beija as águas amorosamente     destino indelével de tintureiros oceânicos
na barra um cargueiro
para onde irá
porque não me leva
a mim
triste marinheiro 

levanta-se uma brisa de leste
o horizonte clareia o espaço
macio o sol nascente te veste
de espuma e luz     acaricia teu regaço
leva-te para onde a lua é quente
as águas cálidas e brilhantes
como pedras preciosas     diamantes

      
eu sou a sarça que seca     o cedro do líbano pelo lenhador despedaçado    
o que sabe que tudo é assim     e assim deve ser
que o tempo mata o impermanente
deixando em cada amante uma semente
que só germina quando a pena abunda
e é afectuosamente embargada pelo sémen da mente

que assim se impõe que seja
natural       tão natural como o amor e a morte
quando os amantes tendo o mundo por tálamo
se sintam agora e sempre em sua eterna mansão

e tenham no seu opressivo grito
a verdade de que o amor é real
a cada instante e no último hálito





698. ABISMOS




foi na morada da serra nascida do gelo e amamentada pelos torgais que das alturas mergulhei pela primeira vez nos abismos

meia-dúzia de chalés no lugarejo
um charco iluminou-se ao som da lua     naquele local haviam uivado tristes tísicos nas noites plantadas de frígidas estrelas

ao amanhecer um manto de neve cobria todas as emoções sentimentos e afectos     os pensamentos escorriam nas falanges regeladas

no vale das éguas um silêncio sepulcral e as penhas douradas ainda orvalhadas projectavam sombras vivas na lagoa de cristal

ali estava o meu oceano as caravelas de antanho os velozes veleiros do algodão com seus capitães ferozmente tisnados pelo sol dos mares embravecidos do sul

canibais vestidos de azul

na vila submissa ajoelhada aos pés dos cumes graníticos bebia-se o sangue da terra negra esventrada por nossos avós 

um garimpeiro de almas abrira as portas do campanário deserto     a casa ao lado habitada por giestas e por bem-nascido silvado estava à venda
ninguém comprava nada     o pároco só     no confessionário

deus tinha andado por ali naquele vazio inóspito de floreiras murchas e de vasos despedaçados     afastara-se entediado     a senhora t… da casa da águia asseverou que andava por assedasse 
se por lá andasse – como se eu acreditasse – já teria sido visto
observador de raios criadores e trovões demolidores como era sou e o ignoro

os degraus da sala desciam por um portal semiaberto
daí haviam partido em pânico e sufoco todos os descobridores de monstros e animais fantásticos
mares de olhos negros onde rugiam cravos mágicos
nos rochedos do firmamento ouviam-se os cânticos do sangue coalhado

um quadro a óleo na parede virgem
- a música é um modelo para a pintura – 
uma fenda no tabique     do lado de lá da realidade o mais belo de todos os tesoiros
nem pratas nem oiros nem pedras preciosas

na escuridão amorosas ninfas subterrâneas
um vazio     um nada 
queda vertiginosa no vórtice do sonho





697. O LARANJAL




santa comba dão     mais além nelas
as vinhas estão mortas e oliveiras entristecidas pregam o olhar no chão
um pinheiro manso repousa no telhado do pavilhão
giestais florescem onde antes ao som das cantigas as enxadas rasgavam a terra
vozes antigas das raparigas 
um pequeno laranjal alberga todos os planetas do mundo





696. DE MIM MORTO NELE VIVO




por vezes 
não sou eu que escrevo
que penso     que vivo
alguém vive no meu espírito
pensa o que não penso
dita o que escrevo
diz o que não digo
e se de mim estou morto
nele estou vivo





695. CIDADE SUJA




a cidade está suja     o fumo cai na nudez das estátuas
trabalhadores estéreis     homúnculos sem cabeça braços de vidro acotovelam-se como ratos cariados nos esgotos putrefactos     sepulcros da vida vagueiam alheados nas ruas pavimentadas a patético suor

há um fogo aceso em cada corpo fedente

as igrejas parcimoniosas estão dissimuladas a sacrossantos ícones
apenas umas máquinas japonesas de fazer imagens distorcidas escorraçam os pombos enfermos e as prostitutas do entardecer 
as frontarias desérticas lembram o cristo antigo nas chagas das pedras amarelecidas de nicotina

sórdida mudez clama por parceria 
ninguém desce ao inferno sozinho 
há sempre um anjo por companhia

as saias curtas os calções rasgados da moda provocatória os olhares impotentes da senilidade poisados nos seios quase descobertos 
finos odores de corpos prostituídos

o coração das fachadas descompassado
as almas dos templos ausentes     pedras que carpem a grosseria dos tempos

no rio uma brisa húmida arrefece o batel     a cidade asperge ilusória beleza quando a luz das lâmpadas amarelas alastra às águas sombrias oprimidas pela enchente

o cacilheiro ilumina-se
lá dentro os últimos operários do sono

alguém abre a bolsa-do-fel num cunhal pombalino aos pés de um cabaré 
acena a um táxi     o motorista ignora-o
um outro pedaço de lixo aguarda o alvorecer num vão de escadas alagado de quimeras

o cais deserto
último trem para cascais





694. PEQUENOS POEMAS




os dias deviam ser ronceiros
como lesmas sem rastro
ou veleiros em delicada brisa




três chaminés enormes
em perfeita quietude –
que desperdício




abomino telhas e soalhos
não assim o céu e o mar
na maresia que em mim nasce




para esta viagem
a melhor companhia
é o silêncio da solidão




sol do meio-dia 

no rio a imagem do céu
na cabecita da rã




dia de primavera –
as ruas sujas da cidade
ignoram-no




do longo e frígido inverno
nasceu fugaz primavera
como paixão de amantes




a seara na serra
é um mar verde
a ondular ao vento




no cemitério entre mortos
leio as inscrições da memória –
uma lágrima inunda os sepulcros




que na hora da morte
o azul do céu seja meu tecto
e a terra eterna companheira




a correnteza do rio inundado
lembra-me a beleza de teu corpo
com o meu lado a lado deitado




inverno chuvoso – 
no campo alagado
dois cães fazem amor






693. CORPO INCENDIADO




o regresso das aves nocturnas à mancha esverdeada do testemunho dos infiéis     o sol cai no mundo dos homens entre placas de mármore carregadas de distantes e altaneiras montanhas
ela esperava-o naquela estação cinzenta e fria adornada a mendigos e ouriços solitários     na vastidão do desejo o lótus encarnado e entumecido agitava-se no fumo branco de uma lágrima 
ah as luzes naquele mar imenso da planície ribatejana   sonho de um orgasmo com ramos crescentes
era impossível descrever a ânsia primaveril do coração  submergido nas longas noites de incenso devastado     o beijo do encontro já possuía a essência da peçonha de todas as partidas
árvores verdes brotavam das searas sumidas no êxtase oculto do biombo lacado
um ceptro adocicado modelou a escuridão de seu corpo incendiado





692. O SENHOR DOS MARES




brilha a paisagem ao remontar do mensageiro     o pescador de búzios     a rede enreda-se nele     pára     demora-se como navio de temerários a costurar destinos elípticos     semicírculos de águas frias nas montanhas circunspectas     portas entreabertas aos leitos desfeitos por magalhães conduzidos ao chapinhar nocturno das raízes do medo     vão mais de cem e voltam pouco mais de dez sem paixão e com esperança
assim respeita a vida de velhos mareantes o senhor dos mares





691. A ROMÃ




sonhei em vão
não lembro
a romã aberta
à taça alada
das palavras
retesadas

todo o sangue
tem um preço
no cadafalso negro
o cabelo recusado
ociosos carrascos
névoa que baixa
nos ombros anões
deformados

romeiros que se desfiam
e tecem nos aguaceiros
grilhões escuros madeiros
pés descalços no manto
teia acesa da morte

o vento parou

que fazes dormindo
rio  amado e  rimado
quando teu amante
do norte já chegou





690. CURANDEIRO DO PRAZER




no campo estercado
da ave as penas ensanguentadas
no terror mudo
de cinzelada mascarada

uma sensação de trovão fresco penetrava a tarde quadrada do outro lado do rio
estrada orvalhada no deserto
hálito de iras nas mãos frias

tudo é vaidade dizias
e à meia-noite começo do meu dia observava-te sereno como figueira em penhasco seco
talvez seja um curandeiro do prazer que morde e é mordido em acto de amor fazer por coroa de pássaros tropicais     talvez o que grita e não é ouvido     o mais esquecido dos sonos de inverno     o rio poderoso das terras negras do fim do caminho     o fio de sol que aquece os gélidos aromas

uma mão é-me estendida com a paciência das nuvens em movimento 
quanto mais me aproximo menos vejo





689. TER FILHO BASTARDO




sangue do sacrifício
em negro altar
nem rei nem nenhum deus
para a salvar

as correntes ferruginosas
comprimiam-lhe os tendões
tratada como se tratam 
os mais pecaminosos ladrões

que crime cometera
tão branda criatura
face delicada
dedos de ternura
crucifixo ao peito
apertado 

ter filho bastardo





688. NAU COMIDA PELO MAR




heras no jardim envolviam os narcisos
séculos medidos pelo respeitável carvalho velho
no banco do lago a angústia das vestes apodrecidas na espera da nau comida pelo mar
viver sombrio da amada
o rio das ausências junto à mansão agora em ruínas
o salão vazio e o quarto desmembrado pela insónia centenária
na cadeira de estilo bárbaro o corpete de mil e uma volúpias
naquele breve olhar vimos nítidos os fantasmas de séculos
o desalento e padecimento eternos





687. SETE-ESTRELO




sinos cálidos de minha aldeia
altas torres por onde a lua espreita

uma espiga de milho dorme nos pedernais

é ali
que o pastor
naquele luzeiro
do sete-estrelo
sonha
suplicante
e
que a doce boca
sufoca de ânsias

sonhos de ontem nascidos ao som do luar
vento oblíquo nas carnes invisíveis
dos cedros ancestrais do ermitério abandonado

o bosque agita-se
longe o cismático mar
e o coração de todos os afogados

labirinto de barcos naufragados
tranquilamente afundados no sangue aberto
ramos de loureiro ferido de verdades

na curva do rio as pombas são sombras nos beirais
luzes esverdeadas dos pinhais
onde as cigarras esmolam eternidades





segunda-feira, 2 de junho de 2014

686. DIANTE DE TI




diante de ti onda em rebentação me ajoelho

nos céus vejo santa bárbara em cada trovão entrado pelo ferrolho da noite

naufraga um diadema na fronte da que partiu
ditoso é quem parte     destino aziago de quem fica

o dia leva a noite
nada há como dantes
sonhos de glória
fama das cidades
enigmas desvendados
por filósofos displicentes

na rua pés e cabeças de porcelana     os descobridores de abismos celebram os seus feitos enquanto na quinta hora o poeta se retira no dó de si

já não se ouvem sons celestiais
nem os cantos que rumavam de oriente para ocidente nas noites estreladas

nos nossos dedos vitrais de cores vivas
na nossa mente rumor das ondas entristecidas
como vosso olhar
flor rubra desistente do mundo e dessa fé que aniquila a magia do luar
tão taciturno e contemplativo na nervura dos seus raios
que nada assim vistes nesta erma negrura
onde não cabe a palavra amar





685. O PECADO DE DEUS




deus pecou
aquando da criação
ao acordar com satanás
na mais vil e cruel
discriminação
de a poucos dar
o que a todos 
não deveria faltar

cada homem deveria ter um cérebro





684. ESPELHOS




as inúteis bibliotecas de espelhos lacrimejantes

pérfidos discursos     um mal presente o elogio do ausente     a mentira     as inconsequentes promessas do amante

é dezembro
persigo dois caminhos
um não lembro
outro decorado a azevinho

como se tudo fossem flores bem acabadas
coloridas a perscrutar de mansinho a eternidade

felicidade delas
saudades minhas





683. É BOM TER-TE




era o fogo vivo das longas vigílias da sorte cruel 
num pedaço de papel as ardentes fibras cantavam seu canto de profundos segredos

a esteira de um desses barcos velozes com o pano todo içado brilhava ao luar
era mais de meia-noite e na praia um rapaz acendia uma fogueira de vidas desfolhadas
enquanto jardins cresciam em lábios delicados de duas loucas 

corpos nus no areal com mãos invisíveis a roçarem os ombros circulares
ritmo infernal de voz estridente a clamar por amor

vã é a vida dos fugidios instantes do apetecer

agora sim poderei dizer-te como é bom ter-te





682. VIRULÊNCIA




o céu nomeou-se à terra no remanso das águas virulentas     a mais bela de todas as mulheres incrustada a prata e oiro desceu o rio amarelo numa barca
um cravo encarnado em alto promontório demarcava o paraíso das crianças por baptizar
cana esguia da calma ilha de vales secos
nos ventos a mensagem de deuses esculpidos no espírito dos homens
música golpeada por espadas de dois gumes     o filho do viajante revolve a luxúria
fonte que chora a penúria do lugar     precipício sem início     torreão de todas as tribos bárbaras confundidas nas vozes dos pastores
o fosso dos senhores arranca-nos os olhos fumegantes
enquanto mãos e bocas ardem em instantes





681. O POVO DO VALE




caem as folhas
no rosal
as andorinhas
em árvores de lágrimas
acolhem o sudário
bordado em manhã antiga

o povo do vale
já pouco vale





680. DE AZUL NO LARANJAL




imagino-me de azul no laranjal
as mãos cruzadas no peito
o silêncio das nebulosas
na brisa redonda do ribeiro choroso

a praça dormia nas lágrimas prateadas
da cruz melodiosa dos ecos trinados
sombras serradas pelas estrelas
nos bolsos de mendigos gastos

os pássaros ocultavam suas cabeças
como velhos soldados
de máscaras de vidro 
sujas baças coçadas e medrosas

ninfas de cetim em gemidos
atravancavam as frestas dos muros
e as arestas do meu coração
ornado por mil e um louros





679. FANTOCHES




os fantoches

os dedos

                 um melro canta
        procissão da senhora da saúde
             virtude da rosa maria

o sino solta um grito primaveril
nas flores tombadas do andor

a esperança entregou o corpo à saudade
a alma à infelicidade

um homem perdido na viela do quotidiano
terra alheia à clareza da floresta submersa

um murmúrio de sapiência brilha nas nuvens negras
em baixo do salgueiro que se afoga paulatinamente

nas folhas mortas ocas pegadas
dos mortos que muito vagarosamente
saem de suas nocturnas campas





678. ARTE POÉTICA




dizem
paz
a paz esteja convosco
que durma connosco

questão de palavras     dez mil anos de arte poética
e outros tantos com as mesmas guerras

que o diabo as carregue





677. EM MAR GROSSO FUI MOLDADO




nesta terra fui criado     em mar grosso fui moldado     de pequeno com brandura e amor me dediquei ao sagrado

tudo é passado

os dias amanhecem e eu acordado
na noite alegra-se-me o coração
longas as horas de vigília deitado

os dias escurecem na fronte sangrante
sonhos desprezados     navio que se lamenta ao ranger dos costados
esquadras de vinho velho     mercados de escravos     uma virgem que se pranteia

coração estropiado de moribundo alijado à tormenta





676. A RESPOSTA NEGADA




o cosmopolitismo da palidez na carta que te enviei
recebe-a     é a minha derradeira palavra

tu que abandonaste esta terra no mais secreto de todos os mistérios     recebe-a

só no interior da flor que do meu peito jorra encontrarás a resposta negada aos vivos e que aos mortos é dada





675. ESTRELA DE DAVID




daquela folha que voa não desvio o meu olhar
beijos sensuais que o ar ao ar dá na elanguescência da madrugada
e esta ferida a coagular nas horas que presencio     bailarinas do primeiro sono oprimido pelo cárcere da razão

multiforme é o vento que sopra pelas entranhas e fustiga as flores às cores onde os pirralhos brincam os caminhos do perdão

irão elas reinar nessa vida violeta
na estrela de david

voarão para longe nas garras do apostolado 
boneca de trapos injustiçada     sem revolta larvar





674. O RESTO DOS MEUS DIAS




o amor perdura
poderia escrever-te com a afeição dos meus lábios

ofício de amor em que estou só

as lucernas ardem e há luzes nas sinagogas
folhas de trevo por pisar

improviso novas linhas na salamandra acesa
sentirás que te olho com aquele olhar que perdeu todos os seus poderes

vozes e árvores milenares comprimem-se no alto dos mastros
o sol da noite arrasta-me para os distantes espaços da dolência

um cântico purpúreo varre a terra     vento solitário nas mãos frias da madrugada coalhada

uma ilha deserta na vida de todas as coisas
uma estria de morte percorre a pele de um novo equinócio

como sempre sem jeito para o negócio
gasto-me no que tenho     o toque suavizado das teclas no piano sopradas pela mão esquerda do diabo e a angústia a reluzir nas alturas

serão assim o resto dos meus dias





673. A ÚLTIMA DAS NAUS DO ORIENTE




foste a amante no que o amor tem de místico

com os lábios enxutos percorri o teu corpo a acender o fogo da partida
nada fiz para resgatar os despojos dos guerreiros mortos na clareira de ervas secas

amanhã quando a fúria do mar for sombra e silêncio rumará para as índias a última das naus do oriente
envio-te nela o baú do meu coração exangue moldado a neve pelas crianças eternas

no espelho do luar feitiço do firmamento lerás a única palavra que dispersou todo o seu sangue nas nuvens doiradas que vagueiam ao sabor das ondas
amo-te

curta mensagem para carga tão penosa e difícil de estivar
será o lastro do navio na tormenta     o leme do rumo incerto     o aparelho da mareação     a certeza oscilante de que o porto será seguro

e o mar lerá nas tábuas do costado escrito a estopa o recado omisso
que ao deixar-te partir
o mundo para mim tinha acabado