mais uma manhã tardia a admirar os compradores do mercado cinzento neblina matinal e frio húmido
encostados às paredes marmóreas e coçadas do café bugio íamos alvorecendo lentamente entre monossílabos e escassos ditos arrojados ao encontro das janelas ao abandono cerradas
alguém articulou uma ou duas frases esbranquiçadas acerca da morte como quem refere pernas esbeltas em curtas saias rodadas a esvoaçar à brisa favorável ou o verde das hortaliças frescas e asseadas ou o aroma do peixe de olhos esbugalhados das bancadas do primeiro piso a devastar as narinas das jovens criadas violadas pelo eflúvio do tabu e pela sudação sováquica dos amos excitados à vista de pasto tenro bancas pétreas e algentes do pão nosso de cada dia para uns e da abastança para outro tipo de gente
convivíamos quase quotidianamente com os carros fúnebres e lúgubres ataúdes gatos-pingados viúvas de branca face em invólucro negro a desmaiar ao som do requiem de mozart mães e pais de jovens destroçados em campanha nacionalista do sem-sentido ornados por bandeiras verdes e vermelhas homens de farpela preta consumidos por cigarros sucessivos
(naquele tempo era de homem fumar e esfumaçar não matava)
noite fora na capela da misericórdia com o deleitável jardim envolvente antecâmara da viajem gratuita para o paraíso que morava uma rua acima
aí havíamos brincado com pobres mas coloridos bibes às guerras e às mortes reinando sobre todos os mistérios
os tempos haviam mudado as mortes eram fiel acompanhamento das horas a morrer uns iriam para frança ou diziam querer ir para não abalar para o quente inferno do ultramar outros a querer voluntariamente partir perseguindo uma cruz de guerra de primeira classe ou podendo ser a torre espada com palma honrada com transmissão televisiva a dez de junho
ele era como todos nós
dezasseis anos talvez
eis que magistralmente diz –
já posso morrer
pouco me importa
não me assusta a dor
posso morrer
já fiz amor
olhámo-lo assim como que dormentes fitei-o nos olhos negros luzentes alcancei em parte apenas em parte o leito de sua alma não queria morrer sem o fazer sem construir a cúpula do júbilo e do prazer do modo como o fizera poderia partir sem medo sem condecorações
passaram-se anos tantos anos desvarios erros pecado luxúria delírios lascívia e desacertos agora entendo-o
para viver é urgente amar
só o que ama vive
e existe
sempre
sem cessar
viver é viver de amor
o amor presente
o amor sempre
e assim
viver para amar
eternamente
um corpo alma
deus gente
animal coisa
Sem comentários:
Enviar um comentário