deito-me e adormeço por uma hora
levanto-me com a mesma sensação de que já pensei tudo o que há para pensar
não me apetece almoçar
e o cérebro está quieto mas ágil
na dormência da mente devoluta
sensação de plenitude e de vazio
plenitude por ter pensado tudo o que um simples mortal pode ou julga poder pensar
vazio por não ter atingido objectivo nenhum
é esse o problema do humano
um cheio-vazio-interminável
quero partir para o norte
estou sempre a querer partir como as aves migratórias
e depois de chegar sei lá onde
a querer voltar
ao sul
o sul tem cor
tem mulheres quase nuas nos extensos areais
tem um sorriso aberto como o cruzeiro estrelado
tem calor
e tem também uma espécie de amor que o frio gélido da montanha ao borralho desconhece
quero partir mas não quero
apetece-me ficar ronronando como um felino indomesticado
aguardando fêmea no covil
no meio de livros já lidos de doutrinas mil vezes debatidas
de verdades obsoletas a estrebuchar no fundo poeirento das gavetas-da-exactidão
viajar sem me movimentar pelo céu escuro das sombras nocturnas
viajar à velocidade da luz por galáxias nunca dantes viajadas
de qualquer modo
tenho de voltar a pensar o já pensado
não descansarei enquanto o não fizer
e não vou repousar depois de o ter feito
a menos que exorcize o cérebro dos seus fantasmas
que destrua os espectros da mente
e os enterre na ala poente da necrópole ornada a cedros
no café envolto pelo fumo abstracto de um cigarro
o mais agradável do dia por ser o primeiro
ouço preso-forçado a televisão
o tema é futebol
o tema actual é sempre futebol
quem não sabe futebol é iletrado
há anos que não se fala de outra coisa como se o universo fosse um gigantesco estádio onde os deuses consagram a eternidade dando pontapés em planetas e cometas num espaço-tempo de infinitas balizas sem rede
o circo continua continua
povo que aplaude animais domados em jaula invertida
os artistas falam um português-estrangeiro-imigrante persuadidos da sua celebridade
reconhecida por uma comunicação social burlesca
são ídolos de gente mascarada de felicidade eles que descrevem com os pés e mais raramente com a cabeça oca um país desgraçado e inábil
tão mal representado por bandos de sendeiros que pastam nos relvados
os artistas são os melhores aliados das ineptas sanguessugas-políticas
são gigantes-pés-de-barro-grosseiro a escoar náusea
argumento de medidas impopulares
fala-se das suas vidas como se tivessem algo de exemplar para nos transmitir e capitanear
são os ídolos da decrepitude e da degenerescência
odeio a comunicação social que os ceva e ao povo cega
e o manifesto?
sou um misantropo selectivo
Sem comentários:
Enviar um comentário