segunda-feira, 24 de junho de 2013

318. QUERO E NÃO QUERO





deito-me e adormeço por uma hora

levanto-me com a mesma sensação de que já pensei tudo o que há para pensar
não me apetece almoçar
e o cérebro está quieto mas ágil
na dormência da mente devoluta

sensação de plenitude e de vazio
plenitude por ter pensado tudo o que um simples mortal pode ou julga poder pensar
vazio por não ter atingido objectivo nenhum 
é esse o problema do humano 
um cheio-vazio-interminável


quero partir para o norte
estou sempre a querer partir como as aves migratórias
e depois de chegar sei lá onde
a querer voltar
ao sul 
o sul tem cor
tem mulheres quase nuas nos extensos areais
tem um sorriso aberto como o cruzeiro estrelado
tem calor
e tem também uma espécie de amor que o frio gélido da montanha ao borralho desconhece

quero partir mas não quero
apetece-me ficar ronronando como um felino indomesticado
aguardando fêmea no covil
no meio de livros já lidos de doutrinas mil vezes debatidas 
de verdades obsoletas a estrebuchar no fundo poeirento das gavetas-da-exactidão
viajar sem me movimentar pelo céu escuro das sombras nocturnas 
viajar à velocidade da luz por galáxias nunca dantes viajadas  

de qualquer modo 
tenho de voltar a pensar o já pensado
não descansarei enquanto o não fizer
e não vou repousar depois de o ter feito
a menos que exorcize o cérebro dos seus fantasmas 
que destrua os espectros da mente
e os enterre na ala poente da necrópole ornada a cedros 


no café envolto pelo fumo abstracto de um cigarro
o mais agradável do dia por ser o primeiro
ouço preso-forçado a televisão
o tema é futebol
o tema actual é sempre futebol
quem não sabe futebol é iletrado
há anos que não se fala de outra coisa como se o universo fosse um gigantesco estádio onde os deuses consagram a eternidade dando pontapés em planetas e cometas num espaço-tempo de infinitas balizas sem rede

o circo continua     continua 
povo que aplaude animais domados em jaula invertida  
os artistas falam um português-estrangeiro-imigrante persuadidos da sua celebridade 
reconhecida por uma comunicação social burlesca 
são ídolos de gente mascarada de felicidade eles que descrevem com os pés e mais raramente com a cabeça oca um país desgraçado e inábil 
tão mal representado por bandos de sendeiros que pastam nos relvados

os artistas são os melhores aliados das ineptas sanguessugas-políticas 
são gigantes-pés-de-barro-grosseiro a escoar náusea
argumento de medidas impopulares  

fala-se das suas vidas como se tivessem algo de exemplar para nos transmitir e capitanear 
são os ídolos da decrepitude e da degenerescência

odeio a comunicação social que os ceva e ao povo cega


e o manifesto?
sou um misantropo selectivo



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