segunda-feira, 17 de junho de 2013

144. MAR-MULHER MAR-TUDO





sentara-se na proa a alisar as barbas malhadas de branco e entrançadas pelo descuido de quem desperta contrafeito
         
uma gaivota esquelética rondava o pontão de sueste em arcos defectivos 
com asas descompassadas na cadência nativa do nascimento do animal marinho 
o mar não o via     com a clareza súbita de predador avezado ao sangue da superfície
olhos extenuados de tanto olhar
não ousava aterrar

as adriças açoitavam os mastros despidos
madeiro alto de súplica corroído de sal 
ruído de címbalos decadentes desarmónicos a anunciar a missa de fim de tarde     os dias corriam lestos naquela manhã cruenta apeada do seu cargo natural
o sémen esgotado por noites doridas anojadas no leme calejado por mãos de dedos cortantes aceirados 
pela ferócia das vagas cruzadas encapeladas 
dos cabos que resguardara nas navegações sem rumo de agulha de marear 
fosca e imperscrutável

afastara-se das pontas de terra que penetram as águas
das escarpas das costas até à invisibilidade dos pormenores e dos pontos conspícuos
arredara-se para a segurança das águas profundas 
que por benevolência aumentam a distância das poupas
das ondas penteadas em cume de montanha submissa onde o coração pulsa lento e pacífico
longe da rota dos grandes cargueiros
e dos monstros oceânicos

não podia dispor do destino
os seus passos milagrosos no espelho das águas azul-celeste 
e o ponto marcado na carta amarelecida pelo tempo ignoto e pelo salitre não eram seus

não poderia dispor do acaso
o vento leve e falso fazia abater a embarcação que rolava e que seria seu catre e esquife
deixava-a correr com o tempo maldito
de nada lhe serviria contraverter o querer do mar arrebatado em fúria

mar-mulher     mar-pai     mar-filho 
mar-tudo

sem ansiedade olhava os limites do futuro
a incerteza dos passos marítimos a tocar as nuvens brancas e luminosas das ondas a jorrar
deixou-se embalar pelo movimento enternecedor desfrutando voluptuoso o medo desse momento mágico
sabedoria de azul cromada à deriva    
o amanhã poderia ser um túmulo perene nas amorosas águas do largo
na bonança do serpeado contraído



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