domingo, 26 de outubro de 2014

944. A TERRA DOS MORTOS



cinco cedros guardam a terra dos mortos        o cemitério fica a meio do caminho das duas aldeias da freguesia      os portões de ferro têm hoje um louva-a-deus por fechadura
tão belo na sua cor verde nos seus gestos piedosos

poucas são as moradas nuas        grande parte de granito cinzento        também as há de rosa e preto praticamente todas cobertas de lápides e flores artificiais        a lengalenga das inscrições tumulares      frases estereotipo do amor na morte a ocultar o ódio da vida        

depois de mortos são todos santos nas suas auréolas de lágrimas ocasionais

uns tantos jazigos      o do velho desembargador todo trabalhado e com um barrote cortado a servir de tranca à porta      um outro recentemente construído da família teixeira aguarda pacientemente pela morte de algum deles
provavelmente uma táctica odoriquiana para prolongar a patética existência      a ilusão da continuidade da matéria em decomposição      americanices      casinhas de brincar aos esquifes

vejo as fotografias      leio os nomes      em mais de metade das campas corre o meu sangue ainda que em putrefacção      tenho família nas duas aldeias
rememoro as vidas os momentos as palavras as ensinanças
o bom e o mau      o tudo e o nada
corpos corroídos pelos exércitos de vermes da indiferença
não há matéria mesmo indigesta que os esmoreça 

um primo da cidade quando vem à aldeia vasculha as campas muda flores das ricas para as vazias      dizem que enlouqueceu      julgo que não     ele conheceu-os      pelas suas mãos faz-se a justiça aos mortos que a não tiveram em vida

as rosas de plástico alegram aquela paisagem macabra a que falta a nova tecnologia de comunicação      redes sociais ou espíritas astrólogos e videntes dos programas bichosos das manhãs televisivas
sou da velha guarda      nada de modernices      na mente guardo as imagens no coração os afectos nos olhos as lágrimas
e nada de lamúrias






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