domingo, 26 de outubro de 2014

947. O CAMINHO







sigo o meu caminho
atropelam-me 
vossos braços
pensamentos
fantasias
e invenções
vossas crenças
hábitos
abraços
mãos
e memória

querem que beba de vosso vinho
que caia nos vossos tentáculos
que me prenda às vossas cadeias
que convosco construa a história

a vida para vós 
é um castelo de cartas
soprado pelos ventos
vida de bens
projectos mesquinhos
ambições e tabernáculos
desejos insalubres
doentios
amarelentos

tudo se transforma num elo
em frágil vontade do momento
império que vedes e não vejo
vã esperança de tempo ido
preso às mais vis grilhetas 

imbecis e resignados
burros de carga
corruptos sem palavra
pantomineiros
invejosos
compadres do oiro 
e do dinheiro
ladrões 
abúlicos 
sevandijas
mentirosos
sendeiros
tristes bestas de nora
matilha de escandalosos
ratoneiros

sois vós sem vereda
sem vergonha
e sem verdade
vermes da peçonha
e da iniquidade
que vos quereis 
ídolos da humanidade


não      não é esse o meu caminho
não      não bebo do vosso vinho


não respondo a perguntas
não me justifico
não presto contas a alguém  
não confesso minhas faltas
vou volto parto e fico
comigo não vai
nem fica ninguém

não sou de parte alguma
sou daqui e de todo o lado
não tenho nacionalidade nenhuma
sou cidadão do mundo
que percorro andando
o meu caminho é meu
eu sou o meu trilho
nasci para morrer caminhando

as horas passam
eu envelheço
os meus cabelos são brancos
os tempos felizes da infância 
não voltam
ora me levanto
ora desfaleço
tenho sangue e lágrimas
nos flancos

não me acredito em deus
em anjos no demo
passo a passo desbravo
cardos e silvados
palavras gestos e actos

durmo num catre só meu
a nada nem ninguém temo
meu coração a espinhos lavro
recolho no meu ventre 
desvalidos e violentados
afogo na barra
bandidos e beatos


sigo meu caminho mar dentro
navego altivo e sozinho


tendes o vosso caminho
florido por perfídias
vós os quarenta ladrões
que vez à vez
ides à missa
tendes ilusões
rezais o terço
ides às procissões
viveis das vestimentas
das aparências
da toleima e da burrice
da hipocrisia
da impostura
do cinismo e avidez

tendes partidos
clubes
gurus
televisões
canastrões por ídolos
telenovelas
concursos e discursos
políticos ladrões
manhosos
cães raivosos
e uma bandeira
suja de sangue
dos famintos
e inocentes

sois covardes 
sonâmbulos e astutos
viperinos sabujos
vermes do poente

tendes filhos
fraca semente
futuro negro
que a si próprio 
se desmente

sigam-no vocês nessa planície
onde o traçaram na imundície
sigam-no vós gente demente 


eu sou apenas eu
não vos pertenço
não comungo do vosso pão
não vivo da vossa vida
tudo o que vos pertence
me aborrece
de vós não quero nada
que me estorve a passada


sigo o meu caminho
de mão dada comigo
sofrido     sozinho 

o meu caminho é meu
o meu caminho sou eu   

não me estorvem
não digam nada
deixem-me passar
que nesta estrada
vossos passos não cabem
e nela é meu lugar


não quero o vosso caminho
não bebo do vosso vinho
vou volto parto e fico
comigo não vai
nem fica ninguém





946. NA CASA DAS BONECAS



um livro com solenidade estirado na prateleira de pinho cor de mel        
de seu nome onde não há médico
fechado e ocioso tanto quanto eu        envolto pela aura pacificadora da casa pequena da aldeia        casa de inverno ou loja da burra como lhe chamo        a casa das bonecas como lhe chamava meu falecido pai

moscas desconcertadas poisam no meu corpo vivo quase putrefacto        incomodam tanto como gente e como a morte dos dias lenta e devastadora        na janela um braço amarelo estende-se até à casa vizinha de meus avós há muito falecidos        as outras ruíram ao peso dos tempos intragáveis deixando por testemunho fragmentos graníticos
todos os amontoados da minha infância agora diluída nos lameiros do vale tristemente sulcado por um ribeiro sequioso        
a igreja mesmo ali de mão dada com a capela do santo cristo no dia da sua festa estupidamente profana e burlesca

onde estão as minhas crenças de criança e os sonhos lívidos da adolescência
o credo inocente agitado em latim pelos lábios rosados        a fé do século
tão puro na alva branca        confirmado na missa incompreensível de todos os dias        anjos e arcanjos que vi e ouvi        o cristo que me sorria benevolente e compassivo da sua cruz de mogno 
a quem pedia desce tu para que eu possa subir
minha madrinha que na testa me fez o sinal da cruz        maria a virgem azul celeste        minha madrinha a mãe de deus e josé o patriarca meu protector        josé e maria        o sagrado coração nas mãos bentas e calejadas do carpinteiro de almas
livro de horas      saltério      vésperas      terço
fé esperança caridade e amor tanto a beijar terra e céu unidos a queimar o rosto do sol abrasador do inferno do verão

penso nisto tudo
onde não há médico
onde não há deus        o deus que matámos     que se suicidou no mosto da alegria     deus que amámos e não amou     fonte que se esgota na fé que fenece dia-a-dia a cada jorna em cada eucaristia

fé razoável        patetice teologal





945. O VELHO POETA



as mãos minerais do velho poeta
ressoavam na noite

havia esgotado as palavras
as afeições      os livros

restava-lhe o degrau da escada mística onde repetia
com devotas carícias
os versos mais antigos





944. A TERRA DOS MORTOS



cinco cedros guardam a terra dos mortos        o cemitério fica a meio do caminho das duas aldeias da freguesia      os portões de ferro têm hoje um louva-a-deus por fechadura
tão belo na sua cor verde nos seus gestos piedosos

poucas são as moradas nuas        grande parte de granito cinzento        também as há de rosa e preto praticamente todas cobertas de lápides e flores artificiais        a lengalenga das inscrições tumulares      frases estereotipo do amor na morte a ocultar o ódio da vida        

depois de mortos são todos santos nas suas auréolas de lágrimas ocasionais

uns tantos jazigos      o do velho desembargador todo trabalhado e com um barrote cortado a servir de tranca à porta      um outro recentemente construído da família teixeira aguarda pacientemente pela morte de algum deles
provavelmente uma táctica odoriquiana para prolongar a patética existência      a ilusão da continuidade da matéria em decomposição      americanices      casinhas de brincar aos esquifes

vejo as fotografias      leio os nomes      em mais de metade das campas corre o meu sangue ainda que em putrefacção      tenho família nas duas aldeias
rememoro as vidas os momentos as palavras as ensinanças
o bom e o mau      o tudo e o nada
corpos corroídos pelos exércitos de vermes da indiferença
não há matéria mesmo indigesta que os esmoreça 

um primo da cidade quando vem à aldeia vasculha as campas muda flores das ricas para as vazias      dizem que enlouqueceu      julgo que não     ele conheceu-os      pelas suas mãos faz-se a justiça aos mortos que a não tiveram em vida

as rosas de plástico alegram aquela paisagem macabra a que falta a nova tecnologia de comunicação      redes sociais ou espíritas astrólogos e videntes dos programas bichosos das manhãs televisivas
sou da velha guarda      nada de modernices      na mente guardo as imagens no coração os afectos nos olhos as lágrimas
e nada de lamúrias






943. DOENÇA DA ALMA



não gosto de labregos pategos asnos      irritam-me os sendeiros nos cafés na venda da aldeia berrando como bodes ao compasso das cartas de jogar e dos copos cheios e por encher de vinho reles        abomino políticos e o hemiciclo bolorento      homens de são bento advogados magistrados imberbes       tudo o que sejam ladrões encartados e por diplomar            o ás de copas o trunfo de paus o duque de espadas os médicos essa corja de cangalheiros os padres a corrupção e a mentira os concílios o vaticano
gosto de mulheres dos vícios e do delito que não é pecado da serra do mar dos que vivem e sofrem neste mundo tão mal arquitectado

dança do espírito      gostar ou não gostar

não posso suspender as minhas preferências como quem abandona a casa paterna o porto seguro da inquietude a protecção do medo e do conflito      aniquilar os mitos e os condicionamentos despedaçar o inconsciente

esta a doença da alma de que nem sequer conheço a existência

terei de a buscar incessantemente como um anel de noivado em gigantesco fardo de palha

negar a vida para percorrer a via      repudiar os hábitos limosos de séculos renunciar ao convívio e à visão das mil e uma coisas
não é certamente este o húmus que faz frutificar os pomares da iluminação

entender as dez mil coisas na sua essência      aprofundar o seu sentido       
as águas dos oceanos escondem riquezas incontáveis seres nunca antes vistos sereias e monstros marinhos
as montanhas vivem ao sonido das estrelas das constelações entrançadas na estrada de são tiago dos cantares claros das cascatas
montanhas onde nasce a seiva dos mares





942. FESTA NA ALDEIA



festa na aldeia        

a banda desafinada encharcada em cerveja 

povo que ri dos outros e de si        povo vegetante     labregos em círculo como nos filmes

estou exausto      alguns minutos bastam-me      cerro os olhos tapo os ouvidos com as mãos mortificadas afasto-me da trágica cena        sozinho

o meu reino por um almude de vinho





941. LEITO DE SERRA NEVE E VENTO



o céu esteve cheio de nuvens      à tarde o sol apareceu queimando tudo à sua volta      ocupei-a a tratar da casa de inverno      granito e pinho      lenha para a lareira para as noites longas e melodiosas da invernia aconchegante      o frio dói e ama      amante perfeito do espírito silente em leito de serra neve e vento





940. QUE DIFERENÇA PODE HAVER ENTRE O CÉU E A TERRA



que diferença pode haver entre o céu e a terra
      
para além das nuvens das estrelas e das galáxias sentar-se-ão os deuses em tronos adornados às cores magníficas da luz

reis deste mundo e reis do céu

mundo de contradições ilusões farsas delitos hediondos medos frustrações ódio e desejos sem fim        mundo de incertezas

céus de paz beatitude amor e certezas

guerra fratricida do impermanente com o que permanece
se nem a favor nem contra nada céu e terra não terão fronteiras

devo entender que não havendo preferências a realidade será sempre a realidade quer na sua aparência quer na essência      e vê-la tal qual é nasce do mais profundo do meu ser atormentado por espectros malignos        a neblina do espaço e o musgo avermelhado do tempo        a angústia da causalidade e o temível porquê        infantilidade crispada na mente aos primeiros passos ziguezagueantes 
o reino dos céus está dentro de nós        aqui nesta terra no nosso corpo que é o universo inteiro





939. MORRER É...



morrer é ter vermes nas entranhas
demónios nos olhos
terra nas mãos gretadas
nos membros ampulhetas azuis
um mar de espinhos no peito
um leito
um lugar de eterno descanso





938. OS PASSOS DO TEMPO



o tempo 
deixa os seus passos
na areia vermelha
do desespero

escurece os que padecem
extermina os receosos
confunde os que se lamentam
assombra os medrosos
mata os que amam





937. OS FIOS DA NOITE



os fios da noite
percorrem os meus pulsos
o arquejo da respiração
e pousam crus
nos meus ombros 
nus





936. O ETERNO AMOR



o carinho das
rimas matinais debruça-se
nos corredores secretos da mansão

um beijo de lágrimas invade
a memória enevoada da retina
repleta de projectos divinos

tão altos e alados
como sangue em suspensão
que mesmo ferido de morte
canta no tempo parado
o eterno amor





935. CONVERSÃO



convertido
queimaste a madeira 
do ídolo

fazia frio

os mesmos monges de sempre
a mesma palavra

camponeses silenciosos
com os bois vestidos
transbordam de madrugada

o sabor da 
terra alterou-se
eiras vestidas de carmim
e as raparigas
os cabelos apanhados em espigas
as pulseiras de cetim

convertido
queimaste as ruínas
morreste para a vida
nasceste das cinzas





934. UM DIA DESTES IREI VISITAR MEUS MORTOS E SEUS VIZINHOS



corre um silêncio pela aldeia        uma brisa ligeira traz-me as horas do relógio da torre da igreja sempre oportuno
os cães já não ladram e os habitantes velhos e exaustos adormeceram há muito        passeio-me pelos luzeiros que se debruçam na varanda púrpura das nuvens deixando-me embalar pelo canto das cigarras e dos grilos        cantata minimalista dos simples a contrastar com o preciosismo de bach que ouço enquanto a insónia não mergulha nos montes        a paz instala-se no cigarro de todas as noites teimosamente sorvido

a madrugada vem medrosa e carente e um dos loucos da aldeia meu velho amigo da infância e da adolescência canta glórias e aleluias a caminho do cemitério      passa das quatro     sua hora de visita aos nossos mortos

penso na vénus de botticelli        agrada-me a presença da sua imagem sem a desejar
a ausência de anseios faz germinar o deleite da beatitude
penso        penso também se não será a paz que faz cessar os desejos        seja como for
o zé já estará a rezar no cemitério percorrendo as campas nuas e as empedradas      sortido de inscrições lágrimas e falsidades        reza aos seus mortos e aos dos outros como cava nas noites de luar os arretos deste e daquele

um destes dias irei visitar os meus mortos e seus vizinhos





933. FALO COM AS MÃOS



falo com as mãos
unhas que são garras soletram 
os ossos
dos afogados

com os meus dentes
lavro a terra que arde
nas profundezas da alma

na orla dos rios
recolho flautas      túneis dos canaviais alados

na berma dos caminhos orvalhados o degelo das lágrimas da orfandade





932. PAÍS DE CINZAS



país de cinzas convertido à loucura da ganância
exaltação de passado andrajoso        jamais apagado dos costados dos negreiros

ovelhas tresmalhadas num mar de oiro falso e especiarias em chaga
os lumes apagam-se nas salamandras da penumbra

um tresloucado percorre a viela cantando glórias e aleluias        coágulos de penitências ocultas

os carros dos emigrantes de barrigas lustrosas pavoneiam-se pela aldeia

o povo calado e os governantes a banhos nas praias do malogrado império

agosto é mês de miséria





931. VIDA SEJA DADA AO UM



escolher porquê e para        aprazem-me as folhosas seculares os campos ardidos as montanhas despidas o mar revolto nas suas afeições incompreensíveis        repugna-me o madeirame do lucro fácil       causam-me asco as casas que deformam a paisagem      galinheiros coelheiras roupa velha nos estendais e à mesa        pátios do nojo cobertos de ferro e desperdícios imprestáveis

a paisagem é um todo mal-encarado      caninos corroídos nas bocas ulceradas      as mãos da raça infectaram-na com o seu habitual mau gosto      pouco escapa à sua estupidez curtas vistas e cupidez natural        a criação vertida nas línguas asquerosas e maldizentes de povos que inventaram deuses anacrónicos e rasteiros

para quê escolher ante a destruição massiva da beleza original        nada de contradições      abaixo o mental antes o sacrifício da soledade afectuosa      que morra o livre arbítrio      inconsciente ao crematório e as damas ao bufete

que interessam ou podem interessar as minhas as vossas opiniões ideias fracassos preconceitos projecções o bem edificado nas raízes do mal e o mal vertido em mescla de betão nas fundações do bem

a realidade é o que é      a árvore verde e copada      a casa branca da colina é rectangular e o porqueiro está imundo e fedente porque não é domingo

a ética infecta contamina o que é      diz-nos fugi do mal e guardai o que é bom na arca doirada das benesses furtivas das divindades inventadas em papel de seda enrolado em patriarcas emprestados 
como se a vida fosse uma partilha de duas courelas demarcadas por cruzes ou por um qualquer rego de água conspurcada 

nem raiva ira ódio afecto ou amor        esse amor falso e repelente que é negócio contrato obrigação      amor de ilusões e contrapartidas        amor nenhum

que morra o dual
vida seja dada ao um





930. LÂMINAS



lâminas que cortam o gelo de uma vida consumida

o muro caído        a casa em ruínas

os filhos que a morte comeu
da velha mulher que se pranteia no regaço
de passado miserável

e a cotovia que apaga o rancor das manhãs
canto sonhado na triste alegria do despertar





929. PARTIR DE NOVO



tenho de ir        partir de novo
ver correr o mar no meu peito

a aldeia não é a mesma
naufragou na inveja no
ódio e ira
submergiu na mentira

o invicta 26        le solitaire
aguarda pacientemente 
pela sua alma





928. ESTE É O PRIMEIRO POEMA QUE TE ESCREVO



este é o primeiro poema que te escrevo
não te conheço mas sei que virás
perfumar o chão
do caminho
e as pétalas do meu coração





927. VELHOS AMIGOS



estamos juntos        velhos amigos
contamos mortos no chafariz enquanto a noite cai nos nossos ombros descaídos
a aldeia deserta        no cemitério respira-se lume
há um cadáver de pé
enquanto a luz gelada da rua
se mistura com o nosso queixume





926. O AR DA CIDADE



o ar da cidade tiraniza-me o peito
na esplanada deserta o calor sufoca a melancolia das cadeiras com nomes fictícios e ilusórios de falsos cartórios e registos 
mortos-vivos        há uma névoa fervente em cada passante        o dono do café sorri enquanto conta as moedas       seu sentido de vida derradeiro 
nem uma mulher bonita
só canhões e mastronças
asnos e anões
velhas aos saltos
alguns carros      muitos
muitas geringonças
uma bicicleta
pimbas na televisão
uma criança pela mão
a besta do avô e o burro do neto
e eu para aqui
tão longe e tão perto





925. AMANHÃ HAVERÁ MISSA



noite fresca de verão
o corpo mortal no tempo que escasseia

amanhã haverá missa        os sinos irão tocar como menino que desperta em sobressalto

católicos e alcoólicos abraçar-se-ão numa fraternidade falsa

o padre recitará as mesmas fórmulas

beatas negrais a levantar a fronte ao céu carregado de nuvens

e à saída todos dirão mal uns dos outros





924. O CAVADOR



o cavador à chuva sentia nas mãos calejadas a bruma do sofrimento

nos dedos tristes de seixos rolados
pulsava a aliança da desolação
sangue empedernido de séculos ferozes

o fim do dia ia tão alto que se podia adivinhar a noite e
seus espectros milenares
feitiços lacustres desenhados a pinho e granito cinza





923. CONTINUO NA ALDEIA



continuo na aldeia        a igreja irá encher-se de mouros ou sarracenos
ora pro nobis porque não sabem o que fazem nem por que ali estão      ser cristão é saber benzer-se e ajoelhar no rumo sempre certo do altar        essa coisa da ressurreição é para os outros os que sabem o que fazem e por que ali não estão
missa de domingo ao sábado      conveniência da insuficiente vocação de corvos      coisa de judeus e idólatras
mas o catolicismo é uma idolatria      

deus verdadeiro tende piedade de nós
perdoa-nos agora e no passado      perdoa-nos o futuro dos nossos pecados
as nossas línguas têm a saburra da iniquidade e as nossas almas armadas com a impiedade viciosa dos nossos ancestrais 

vivemos sobre os ossos e pecados dos nossos antepassados





922. SE HOUVESSE JUSTIÇA DIVINA



se houvesse justiça divina
a palavra seria dada aos justos
e os iníquos seriam mudos





921. EXPERIÊNCIAS



passei por tantas experiências      as luzes cruzavam-se no coração do asfalto enquanto mulheres seminuas deslizavam na calçada enregelada        ofídias natas
o sangue fervente das víboras dos becos orgíacos contaminou-me arruinou os castelos de cartas soprados por ventos macabros que a boémia gera de dentro para fora
terral dos monstros furibundos dos assexuados dos loucos ensopados em esponjas de vinagre      roupagens esfarrapadas da novíssima realeza 

uma garina suada na quinta porta da última esquina coçada da avenida      poiso milenar do prazer na anunciação de viagem ao purgatório das reses indefesas        o meu olhar cansado mas penetrante como adaga rasgava as fêmeas em grupo como pombos estagnados aos pés da sé 

lembro o dia da aterragem no aeroporto militar vindo da guerra        um garoto vestido de azul pronto a sorver a vida numa mesa de prata com os três talheres do marfim pecaminoso
o adeus definitivo às praias e densas florestas equatoriais às mestiças esmeralda e palmeirais
um vazio do coração na esperança das mais vivas e libidinosas urgências





920. DEUS CANSADO



o deus dos terramotos e dos vulcões
alcança a alegria
nos costados do velho ofício

dói-lhe o corpo      o espírito      as palavras
está cercado pelo seu próprio fado
por folhas secas
troncos sulcados por negras ovelhas

e no cimo das montanhas
fecha os olhos cansado





919. OS MEUS VÍCIOS



os meus vícios
uma oração por cada um

a palavra de deus é gratuita
mas dura o tempo de um relâmpago
recolhido nos olhares assustados
de monges e pastores da negritude

há uma cadela na rua com cio
ervas que crescem na tua língua madura
e os cães amontoam-se à coberta da lua fria





918. UM DIA VI-TE NUA



um dia vi-te nua      tu a doçura dos meus olhos até aí indiferentes às formas      eu petiz tu adolescente
pela primeira vez senti o que é normal em gente      cresceu-me nos calções azuis de domingo e cresceu tanto que assustou os próprios botões
eu queria      o bolso estava molhado
mas como seria       
sabia sem saber      voltei a casa e percebi qual era o pecado perante nosso senhor de que tanto nos falava o prelado
ora porra se tivesse estado calado