sábado, 29 de junho de 2013

456. PARA VIVER É URGENTE AMAR





mais uma manhã tardia a admirar os compradores do mercado cinzento     neblina matinal e frio húmido
encostados às paredes marmóreas e coçadas do café bugio íamos alvorecendo lentamente entre monossílabos e escassos ditos arrojados ao encontro das janelas ao abandono cerradas
alguém articulou uma ou duas frases esbranquiçadas acerca da morte como quem refere pernas esbeltas em curtas saias rodadas a esvoaçar à brisa favorável ou o verde das hortaliças frescas e asseadas ou o aroma do peixe de olhos esbugalhados das bancadas do primeiro piso a devastar as narinas das jovens criadas violadas pelo eflúvio do tabu e pela sudação sováquica dos amos excitados à vista de pasto tenro     bancas pétreas e algentes do pão nosso de cada dia para uns e da abastança para outro tipo de gente
convivíamos quase quotidianamente com os carros fúnebres e lúgubres ataúdes gatos-pingados viúvas de branca face em invólucro negro a desmaiar ao som do requiem de mozart     mães e pais de jovens destroçados em campanha nacionalista do sem-sentido ornados por bandeiras verdes e vermelhas     homens de farpela preta consumidos por cigarros sucessivos 
(naquele tempo era de homem fumar e esfumaçar não matava) 
noite fora na capela da misericórdia com o deleitável jardim envolvente antecâmara da viajem gratuita para o paraíso que morava uma rua acima 
aí havíamos brincado com pobres mas coloridos bibes às guerras e às mortes reinando sobre todos os mistérios     
os tempos haviam mudado     as mortes eram fiel acompanhamento das horas a morrer     uns iriam para frança ou diziam querer ir para não abalar para o quente inferno do ultramar     outros a querer voluntariamente partir perseguindo uma cruz de guerra de primeira classe ou podendo ser a torre espada com palma honrada com transmissão televisiva a dez de junho

ele era como todos nós 
dezasseis anos talvez
eis que magistralmente diz – 
já posso morrer
pouco me importa
não me assusta a dor
posso morrer
já fiz amor
olhámo-lo assim como que dormentes     fitei-o nos olhos negros luzentes     alcancei em parte apenas em parte o leito de sua alma     não queria morrer sem o fazer sem construir a cúpula do júbilo e do prazer     do modo como o fizera poderia partir sem medo sem condecorações
passaram-se anos tantos anos desvarios erros pecado luxúria delírios lascívia e desacertos     agora entendo-o
para viver é urgente amar
só o que ama vive
e existe
sempre
sem cessar
viver é viver de amor
o amor presente
o amor sempre
e assim
viver para amar
eternamente
um corpo     alma
deus     gente
animal     coisa



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