domingo, 23 de junho de 2013

302. INICIAÇÃO





noite de todas as ambições
coragem da perdição
a iniciação
há quarenta anos
ilusão

bem pode ter sido verdade
ou pura imaginação

uma cave clandestina no anonimato da ditadura    
mulheres seminuas esgueiravam-se por detrás das mesas de veludo vermelho     havia cartas ao centro     uma rainha de copas e um rei de espadas numa delas
negócios sinistros encapuçados
o fumo do cigarro mais reles misturava-se com o dos charutos cubanos     frenética a erva adocicada sorvida pausada e vagarosamente
as luzes sorriam piscando para o ringue improvisado
nos fundos encomendava-se um serviço     a morte entrega-se sempre nos cantos da libertinagem
sabia
ninguém o dissera
mas conhecia aqueles olhos brilhantes do mecânico de quem sem rosto vai matar o que rosto para ele não tem
no tapete vermelho do ódio rasgado pela vendetta
um colt 38 ou 40 visível crespo e ameaçante
quem seria desta vez? alguém 
uma alma que o diabo ou deus hoje já tem
ou que não é de ninguém 

algumas estrangeiras do norte rodearam-me     estátuas gregas vivas
audazes 
havia ainda uma venezuelana quase nua pele escura a brilhar
e portuguesas acanhadas
mal-acabadas
lânguidas fêmeas 
pedradas
curiosas     és tu que vais lutar?
palavras em charco de tensão muscular de quem aguarda disputa sem voz

a cidade nunca mais seria a mesma
iria arruinar-me com ela
luta após luta
puta atrás de puta

o patriarca da família senta-se
obedeces primeiro
não demandas e um dia mandas
só sabe comandar quem souber obedecer 
cegamente 
cegamente moço
diz com a solenidade dum pinheiro nórdico a resistir aos ventos do árctico 
trazemos nos corações a frieza dos rios gelados das montanhas nevadas e da negrura dos fossos ensanguentados
- como faca acerada que tributa gotas de sangue no vodka puro
bebe
o teu sangue é nosso 
com ele 
tropeçaremos nos cadáveres dos adversários
não há homem nem deus que não tenha inimigos e traidores
que não haja
lei nem ordem nem pecado nem piedade
esquece quem morre
corpo separado da cabeça rolada
é um nada

a hora interrompe o discurso
pesos pluma
o ringue improvisado

tira o roupão dizem
  
o polaco era baixo de vermelho e encorpado
eu alto de negro e magro
vozerio gritos estridentes das gaiatas
dois rounds a parar golpes
terceiro round 
dois golpes baixos do estrangeiro
raiva e ódio
um jab a medir a distância
um hook frustrado
um novo frontal a abrir luvas velhas
cross furioso
jab jab directo 
jab-directo e uppercut
a lembrar a dança 
de shozo saijo
o polaco no tapete
cambaleante
arrasta-se e sai
esforço inglório
technical knockhout  
e vai

a música martelava as paredes dos ouvidos inebriados
sangue vivo no sobrolho
dor no baixo-ventre 
as nórdicas despem-se
na mesa de poker centenas de notas
um beijo do patriarca k...
a selar o compromisso 
a comemorar a vitória
do terno de oiros
inscrito em luvas de napa

bem vindo ao inferno
dos vencedores
bebe 
usa as mulheres

disse

está velho mas ainda vive


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