domingo, 23 de junho de 2013

271. ORAÇÃO FÚNEBRE





oração fúnebre    a meu pai


aqui cheguei sem saber donde
daqui parti em travessia 
cujo destino desconhecia
do nada para o nada 
que tudo é e será
verdade vedada 
pela ilusão da matéria
pela ilusão da própria ilusão
que a si mesma se pranteia

guarda as lágrimas para os males do mundo
se te amas não te lastimes
se te amas não te deplores
se me amas não me chores

comigo nada transportei
nem a sombra dos bens que acumulei
não vejo realidade no que realidade não tem
estou liberto da ilusão
aliviado das trevas de maya
da injúria e do louvor
não voltarei a conhecer a dualidade
tudo é um

suprema beatitude a da unidade
na eterna casa do amor gratuito

ceifei com o gume da espada dos justos 
as amarras da dor
e vogo agora no mar do êxtase
eu que sou 
o sal que se dissolve no oceano da vida
o sol que brilha no todo
o tudo que no tudo se decompõe  
o que na pura alegria 
da beleza e do amor sem fim
se refugia e
enquanto a noite escura vos ilude
penetro o universo 
a infinitude de formas mortais 
sequiosas de divino afecto 

meu corpo ardeu e fez-se brasas
as brasas fizeram-se cinzas
as cinzas vaso de recordação
enquanto em morada eterna vivo
num horizonte de ternura infinito

o pote de argila desfez-se em cinzas no fogo ardente
as cinzas subiram nos céus 
depositando-se em partículas no solo violado
o meu coração incandescente já não existe

cinzas são apenas cinzas 
derramadas noutras cinzas mortas
que não sujam nem são sujadas
não ofendem nem são ofendidas
não humilham nem são humilhadas

destruído o vaso de argila
decompuseram-se para todo o sempre 
os sentimentos negativos
mesmo os mais profundos e obscuros 
os desejos e as paixões
o eu mortal inconstante e impermanente
animal ferido na floresta minada de perigos
que se agita inquieta e angustia

extinto o desejo
aniquiladas as paixões
com a mente apaziguada 
na tranquilidade do vazio
penetrei a alma
onde ele reside

não há orgulho que consuma o que está consumido

atingi a minha morada
o mundo deixou de me seduzir
não me choro nem vos choro

não me peças perdão
perdoa-te
na terra das searas do pão eterno
não há nada a perdoar
tal como não havendo ferida
não há enfermidade para curar

a minha morte tem um gosto amargo 
para os que em vida não souberam morrer
sou um pastor com o rebanho tresmalhado 
nas pastagens para sempre verdes do vale doirado da reunião
confundido pelo medo agonizante do dia da vossa perda
amo e sou amado
para além de qualquer condição ou contradição

cuidarei de vós de mãos dadas 
com quem de mim agora cuida
que em vós não haja mais orgulho 
ganância ambição
que nada vos afecte
nem calúnia
louvor
ou insulto
não recebais tais presentes envenenados
devolvei-os aos seus doadores 

peço-vos paciência
peço-vos esperança
peço-vos caridade

sigam o amor
sem ódio rancor ou raiva

que os rios caudalosos vos não atormentem
que as montanhas em queda vos não apoquentem
que cada passamento seja uma lição
vençam em vida a morte
façam florir o lótus em qualquer estação

aguardo por vós na luz
na terra da alegria infindável
chamada reino


podes ter tudo o que quiseres 
somar matéria à matéria
acumular bens
ostentar riqueza e poder
mas não terás descanso
enquanto não cremares o desejo
o ser e o ter



dedica as tuas acções àquele de que me alimento
e fica onde estás 
ou parte sem partires
todo o lugar é templo de adoração
e o maior de todos a tua alma
quem o conhece conhece a alma do mundo
fica onde estás
não o procures de igreja em igreja
de peregrinação em peregrinação
ele está no mais profundo de teu coração
fica onde estás
mesmo ausente
alivia o jugo da tua mente 

morto o desejo
vive para a eternidade

o caminho é estreito e pedregoso e a porta inabalável
clamai por ele para que o trinco de seus portais se abra


sejam felizes em vida e na morte
não me chorem
não se chorem
festejemos este dia
na paz dos tempos
na terra chamada reino


só é feliz quem o bem tem dentro de si
faz o bem
essa a tua única missão
todo o resto ilusão

guarda as lágrimas para os males do mundo
se te amas não te lastimes
se te amas não te deplores
se me amas não me chores




Sem comentários:

Enviar um comentário