domingo, 23 de junho de 2013

267. PORTUGAL É UMA COLÓNIA BRASILEIRA





o dia está acinzentado 
sem estar abafado

no quiosque junto ao meu prédio uma velha entediada queixa-se do verão
terei de passar as férias nesta solidão
respondo sem pensar 
isso não é verão e sigo o meu caminho na direcção de uma bola de berlim e de um café curto

noto que os seus olhos me seguem sem saber porquê seguem os meus passos e sua sombra
julgo que pensa 
boa vida     tão novo e sem nada para fazer
ou lê ou finge ler com o livro debaixo do braço
quem lhe dera a ela uma reforma para passar os dias a fazer ponto de cruz e arraiolos exercitando a morte


na esplanada há uma espécie de tristeza amargurada
uma morte viva melancólica estúpida fastidiosa e triste
a tristeza do tédio opaco de vagos pensamentos sem rumo ou destino
de pequeno veleiro engolfado nas águas letais da barra

penso e pergunto-me porque existo 
reparando como quem não repara 
na existência de duas lésbicas na mesa ao lado e de um homem sem cabeça com um jornal desportivo a servir de pára-sol na mais afastada
há sempre alguém com um jornal desportivo a servir de cabeça
há sempre alguém que discute a asinina política desportiva
há sempre alguém que vive como bola de borracha pontapeada por mancos acanhados 

o homem levanta-se e eu sinto-me serenar como quem está para urinar há horas e não encontra lugar
sinto-me aliviado
tenho espaço 
preciso de espaço para me questionar se o meu verão não será um quiosque com horas certas de abertura e encerramento fumado por um marlboro
ou um jardim em que as rosas florescem no inverno e a geada queima os crisântemos no estio ardente

uma das lésbicas assoa-se limpando-se do passado
passa lentamente com os dedos pelas narinas removendo pequenos filamentos de incompreensíveis sentimentos de culpa 
a outra está imóvel sorvendo o fumo de longo e fino cigarro olhos postos nos automóveis de luxo que passam na praça
parece procurar presa
é o macho penso como quem está ausente da razão 
mas que tenho eu de julgar
apenas factos 
quedemo-nos pelos factos
os seus olhos penetram fixamente os mesmos objectos em que os meus se demoram 
mulheres
mulheres belas e elegantes
somos ambos predadores 
indiferentes um ao outro
apesar de ambos sermos lésbicas

jovens-mulheres desfilam seminuas mirando-se nos vidros das lojas que servem de espelho 
a maioria brasileiras
compenetradas no seu encanto
algumas andam dançando e pelo canto do olho admiram o seu jeito peculiar de andar
o seu modo especial     provocante bamboleio
pernas altas baixas médias magras gordas redondas 
pernas para todos os sabores
pernas para todos os odores
eu olho-as a lésbica também   


o verão seria diferente se me apaixonasse
as lésbicas casar-se-iam
eu igualmente
sem boda     odeio banquetes festanças
as lésbicas levantam-se     ainda não almoçaram
levanto-me e mudo de mesa
volto a sentar-me


lá dentro uma jovem almoça com roupa de ginásio e saco de desporto caído ao lado
pequena
magra
graciosa
de olhos penetrantes
distantes
não demonstra interesse em nada que a rodeia
pede o serviço ao atencioso empregado brasileiro sem se dignar olhá-lo
olho-a mansamente entre o espaço de duas colunas irregulares de fumo
lembra-me uma namorada antiga na sua frágil beleza 
a mesma de uma flor exposta ao rigor do tempo ou de uma erva da calçada com displicência acalcanhada


sentam-se duas brasileiras
uma talvez não seja
quase a não ouço falar
a outra fala sem cessar
menopausa precoce 
mesmo querendo não a ouvir
sou cativo da voz
penetrante
irritante


as brasileiras invadiram-nos estão em todo o lado
portugal é uma colónia brasileira
para gosto de uns e desgosto doutras


por mim     por vezes     projecto viver no brasil 
partir para itacaré ou uma praia deserta no norte onde possa erguer velas ao vento e bolinar largo junto à costa de sereias intocadas de ventres cor de bronze e seios hirtos apontando o horizonte 
navegar no amazonas sorver o odor da selva escutar o louco canto das aves brilhantes com uma amada a bordo estirada nua no convés 
a meio-navio envolta no cordame de seda
uma nativa escura e bela que ame por amar inebriada ao sol e afagos 
a quem possa agasalhar no meu peito nas noites húmidas e fartas de estrelas cadentes enquanto o leme solitário manobra em faina segura levando-nos de mansinho com a proa a cortar águas para terra-de-ninguém
sonho mas que mal faz sonhar senão o mal do próprio sonho
quando não há terra-mãe?


uma mãe entra com a filha ao colo
qual delas a mais bela
aprecio-a sem a desejar
é de uma beleza intocável 
pura 
maternal
deixai-a estar enlevada
deixai-a repousar nas carícias embevecidas que com o olhar dispensa à criança
é mãe o que lhe basta 


a brasileira papagueia enquanto a amiga de óculos escuros para não ouvir simula que presta atenção
gesticula ri alto meneia-se
faz reiki pratica yoga assevera que encontrou a paz
tem sensações no corpo nalguns órgãos como se estivessem a ser miraculosamente limpos durante as sessões
agora tem as energias equilibradas e bolsos mais asseados
mas age como quem em emboscada fatal de guerrilha está debaixo de fogo cerrado
as mãos tremem-lhe e há um ou dois pequenos tiques evidentes que a traem

temos de viver o dia-a-dia amar a vida os outros e ter forças
diz
e ter energia     a que vem de nós das nossas acções e a que nos canalizam
deve estar a referir-se ao terapeuta-canalizador penso
ela que eléctrica vertiginosa tem uma tomada mal ligada à terra e um fusível inoperante ao excesso de tensões
e julga ser um braço-de-deus
deus deve ser uma centopeia penso e sorrio disfarçando o sorriso na página do livro aberto

alguém uma amiga da baía deitou-lhe as cartas
encheu-a de búzios
apenas certezas
no passado não errou
no presente acertou
no futuro vaticinado abstractamente 
tudo cursará o melhor leito
será rica feliz amada e finar-se-á bem tarde
a boba encartada

convida a amiga para jogar golfe com a equipagem do falecido
será viúva divorciada ou mal-amada
instiga-a a aprender
o problema diz está nos tacos as bolas são todas iguais
o mais importante do equipamento são os sapatos


preciso de descansar os ouvidos
volto para casa
e no silêncio da solidão não penso nada


http://www.homeoesp.org/livros_online.html



Sem comentários:

Enviar um comentário