segunda-feira, 21 de outubro de 2013

631. POEMA DA CRIAÇÃO DO MUNDO




William Blake - Deus Criador





          OU POEMA DE DEUS OU DO DIABO



escrevo este esboço doente     não o escreveria se não estivesse assaz enfermo     se não cuidasse no mal que fiz e que hei-de causar     actos de amor     de ódio     de deus ou satanás

- se deus o quiser     por assim o ter destinado quer eu queira ou não     o que está escrito não pode ser apagado - 

se o meu peito sanguinolento não sofresse como sofre
e se a morte não fosse aquele grande mistério que tanto nos apetece e que não se conhece com preces nem é compreendido por filosofias ou teologias em noites de amarga especulação     misérrimo pensamento

vive-se     como se pode      por não haver melhor
come-se     bebe-se     faz-se sexo     dorme-se  
                e o pior
     é que se vegeta sem nexo
     da nascença à cova funerária
     e dos que partiram deste mundo
     nenhum torna
     ninguém dá nova
     de corpo ou espectros
     ressuscitados     reencarnados
     almas de deus
     ou de trinta-diabos



            onde estás tu senhor?


            quem sou eu?



ao acaso vou abrindo o desgastado saltério     herança de meu pai

     - ouvi ó deus a minha voz na aflição

eu sou a palha que do terreiro o vento de sueste leva
árvore de folhas ressequidas que em tumulto escondido se inflama
o que aborrece o caminho da mentira

     - tende compaixão de mim senhor porque estou doente

sobre mim cai uma chuva de fogo vivo e enxofre
coração em lágrimas no covil dos leões
corpo que em fornalha ardente novamente sofre
mente angustiada     mortalha de lamentações

     - meu deus meu deus porque me abandonaste?

   perfuma-me a cabeça com óleo de nardo 
   se és bom e recto a mim que te prezo  
   mostra-me o caminho nesta noite escura
   alivia-me a mim que sou fraco deste fardo
   eu penso no pobre no que sofre no desvalido
   sou como o veado que gemente suspira 
   gazela em busca de verdes prados e água pura


do novo testamento que se diz de teu filho
     
          - se alguém quiser vir após mim negue-se a si mesmo
       tome a sua cruz dia após dia
       e siga-me

            sem condições te seguiria
            por vereda de abrolhos
            cardos e despenhadeiros  

            fundearia na tua palavra
            e se teu caminho visse
            e a tua lei entendesse
            
            nela meditaria noite e dia 

            imita-me dirias
            e eu o faria

            seria como és
            madeiro nos braços
            cravos nas mãos
            e nos pés

            coroa de espinhos
            na fronte
            chagas de verdasca
            a bem aceites
            sangue da alegria
            beberia de tua fonte
            tua missão imitaria

se o mundo salvasse de tanta miséria doença fome morte
terríveis males por teu pai criados     poderes que te foram dados
                  mas a mim não

se expurgasse do universo cataclismos terramotos guerras malefícios corrupção furor ganância ódio e vingança
males que teu pai previu
                                   mas eu não

se iníquos e ímpios poderosos e governantes deste mundo sanguinários traidores de seus povos famintos
que nada e ninguém temem 
pudesse julgar     esmagando seus braços     exterminando-os e às torrentes malignas de seu sémen no pecado imerso      
que tu em nome de teu pai podes
                                                 e eu não

            seguir-te-ia
            mas às tuas igrejas não  




no princípio o teu santo espírito movia-se à superfície das águas
a terra era informe

olhaste o abismo e aí projectaste o mundo no caderno do destino
onde tudo está escrito com infinita ciência     dizes tu

cansado de tanta solidão munido de sólida intenção
- a eternidade também cansa e o vazio entedia –
no primeiro dia fizeste resplender a luz separando-a das trevas

no segundo fizeste os céus separando-os das águas
mas deste-lhes a mesma cor     quererias neles espelhar o amor

no terceiro enxugaste a terra
o mar uniu-se aos céus no horizonte
e ordenaste à terra que produzisse erva 
arbustos e árvores de fruto

no quarto criaste os luzeiros do céu
no quinto povoaste a terra de todo o tipo de animais
domésticos     répteis     ferozes
e sob o firmamento as aves
nalguns brejos     
alguns animalejos alados     

não satisfeito
fizeste-nos à tua imagem e semelhança
a nós falsos dominadores da natureza
pasto de melgas e mosquitos

                        e ponderaste a tua obra muito boa

como pudeste tu o omnipotente o omnisciente
não prever o evidente
não fazer o excelente
se a erva sofre quando calcada
e a árvore quando derrubada

como pudeste na tua omnisciência criar
bicho-come-erva     bicho-come-bicho     bicho-come-gente     gente-come-erva     gente-come-bicho     gente-come-gente

violência e dor

não violaste os princípios de tua omnipotência?

parece-te isto bem senhor
cadeia interminável de sofrimento
outrora agora e para sempre
a isto chamas amor? 

bela é a ave     e ave-come-ave ave-come-bicho bicho-come-ave ave-come-gente e gente-come-ave
é esta a tua natureza
aniquilação dolorosa da beleza?


        razão a de quem diz da vida
        tudo é sofrimento
        nascimento     doença     velhice     morte
        desgraçado o que nasce
        o que teve tal sorte


o homem foi por ti moldado
em pó da terra

colocaste-o no jardim dos jardins
no meio dos mais belos jasmins
ó éden de todas as delícias
visões perfumes júbilo carícias 

mas estava só     
e a solidão mata
basta de sevícias
disseste

enquanto dormia     sorrateiro     tiraste-lhe uma costela
e dela 
fizeste a mulher
que por argúcia tal 
de ofídia sua aliada
o fez comer da árvore do bem e do mal
- para que criaste tu o bem e o mal     não sabias que eva faria adão comer o fruto     e que a serpente nada tem com o assunto? –

amaldiçoaste injusto a serpente
aumentaste os padecimentos da mulher
e o homem nascido para o prazer
para a eternidade e lazer 
teve de comer o pão que o diabo amassou
castigo do pecado gerado por quem o criou



eva penetrada por adão
deu à luz caim e abel
e como o que nasce torto
tarde ou nunca se endireita
abel apareceu morto
por obra de seu irmão

ainda assim os homens multiplicaram-se
penetração após penetração no seio da erva
gozo primordial de adão com eva

        mas nos seus corações a malícia reinava


arrependeste-te então tristemente
contrário à tua sapiência
usada na criação com displicência
- eu deus omnipotente e omnisciente arrependo-me de ter criado o homem sobre a terra

choraste lágrimas de sangue     amarguradamente     na terra corrompida e cheia de violência
e tracejaste com raiva o malfadado caderno do destino que com negligência escrituraste



de toda a multidão apenas noé te era agradável
e pensando não sei se bem se mal
ordenaste-lhe a construção de uma arca     espécie de barca
nela noé embarcaria a mulher os filhos e dois seres vivos de cada espécie existente na terra

por um dilúvio em sete dias 
– mania a tua – 
exterminaste toda a humanidade
e
aos pobres e impolutos animais
num acto de nova crueldade


não sabias qual a natureza do homem que criaste    
não sabias que no seu sangue correria para todo o sempre corrupção e violência
e que a humanidade é a mãe da demência?

que pecado cometeram os animais que ficaram
com que direito os submergiste     
que tinhas em mente     
tua vontade     discricionária e indiferente?


a ti meu deus assiste a razão quando disseste
- façam-se à minha imagem e semelhança
desgraça atrai desgraça     castigo divino injustiça humana     erro     desesperança

e tu sempre o soubeste
e a noé o disseste
quando assinaste a aliança
de nenhum outro dilúvio lançar
sobre a terra e sobre o mar
- de que te valeria também     nada variaria – 
desististe e bem senhor

            aposentaste-te de criador



            quanto a mim e no restante
            sempre soubeste
            quem iria eu ser
            que iria eu fazer
            que pecados cometer

            dizes
            dei-te o livre arbítrio

            que bom que és senhor

            determinas-me ao acto
            definitivamente lavrado
            no caderno do destino

            e a criatura que agora vês
            pecadora perdida sem tino
            foste tu quem a modelou

            e sem que mudança 
            houvesse na tua ciência
            ou não seria omnisciência

            o que tão contrário
            é à tua essência
            como a presença do mal

            e se por tal iníquo sou
            por tua vontade
            erro ou desacerto 

                eu pecador me confesso
                eu pecador me perdoo



tantos são os males do mundo     e não os reprimes
não podes senhor?     se não podes não és tu o deus do nosso coração     se não queres és um ser indiferente desapaixonado     não és tu o deus de isaac jacob e abraão     
se não podes nem queres és impotente e indiferente       deus dos fracassados e dos dementes

podes senhor     podes exterminar o mal?     essa a tua natureza e essência
mas não o fazes     não cumpres teus preceitos     não alimentas os teus eleitos com paz e rectidão     não és o nosso pastor     quem nos leva a descansar em verdes campos a água pura irrigados



não te entendo senhor
mas um prometimento te faço     desisto de te buscar fora
buscar-te-ei dentro
e se num qualquer dia
no recanto da minha alma te encontrar
perguntar-te-ei
porque nasce o mal do bem     o imperfeito do perfeito     o injusto do justo     o padecimento da paz

nesse dia
- talvez a final tudo pareça bem - 
com o coração em chamas
o espírito em festa por te ter
sabendo que nos amas
de vez vencido o mal
louvar-te-ei


então
olharás do céu para o filho do homem e encontrarás um sensato que te desejou sem desfalecer em momento algum

            per omnia saecula saeculorum



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segunda-feira, 30 de setembro de 2013

630. OFERTÓRIO





meu deus
que tenho eu 
para te ofertar?

noites de volúpia
sexo sem findar
vinho cor de rubi
na mesa a abarrotar
ou esta dor
que me consome
angústia existencial
a germinar

pesar de quem te ama
e na transgressão se suja
que não sabe o que ama
nem porque ama
e talvez nem saiba
o que é amar
nem porque é sujado
na violação da norma 
que do madeiro nos deixaste

dou-te apenas o que te posso dar
este padecimento angústia dor
que tu em mim geraste


629. AMOR A TRÊS





as duas reclinadas
duas línguas fermentadas
dois lábios orvalhados
dentes alvos
que mordem o desejo

dedos que roçam
os grandes lábios 
a protrusão eréctil
num movimento surdo
perfeito extasiante

eis o que me aguarda
dois corpos em chamas
uma única alma
cálida e vibrante

a cama branca
por testemunha
do que vejo
sinto



628. AMOR SEM TEMPO





aproximas-te
envolves-me as faces
com o veludo dos dedos

sentas-te em mim
e por horas
breves e lânguidos
movimentos
exterminamos 
todos os pensamentos

nesse vaivém conubial
amamos
atá que a alba
solene
nos venha arrebatar



627. JÁ NÃO HÁ HOMENS COMO OS DE OUTRORA





dia de eleições     até os miseráveis sorriem não sabendo porque o fazem     sem consciência do que lhe irão fazer
povo dono do sofrimento     jugo que carrega tal junta de bois irmanada 
rebelde na fala     cobarde na gesto     são milhares nos covis escondidos os que mastigam suas mágoas e expelem queixas nas águas dos bebedouros profanados
que lhes interessa se ao contíguo dói corpo ou alma?
chove aguaceiro infiel amargurado sozinho como cisne que escolhe morro para o derradeiro canto     paz às suas penas
povo enlouquecido pelo consumo exigência de cosmética social     como pardal-ladro em beirado de luz negra coça-se com o bico corroído nas partes definhadas e engelhadas
gente que grita no delírio da ficção     vinte foram os anos de oiro falso     que será deles agora amedrontados e abúlicos psicopatas?     fantasia das arcas volantes e das profecias de videntes estremunhados pelo ópio da insipiência     obtusos marujos de água adocicada pelas doações universais     broncos     toscos básicos varredores da parada
a escuta dos genitais     generais sem armas     os ais respirados com sofreguidão     invenção projectada nas páginas de uma história impressa a ranço
   inculto e patético                crédulo e ridículo
   apático   acrítico                 besta de carga
   escravo                              servil
que sofre
gazela despedaçada por leões
ovelha cercada por lobos
boi atacado por chacais
triste povo que padece no coração da infâmia     injustiça sem revolta
já não há homens como os de outrora


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626. NUDEZ FRIGÍDA





franzina nudez
de costas voltadas

pela parede 
nua amparada
reluz na alvorada

do sexo

625. BRINCADEIRA DE MENINAS





no sofá verde
da parede amarela

brincais ao amor
pela primeira vez

jovens e belas
experimentais
o toque subtil

donzelas em erecção
uma mão na rosa



624. DOER DE AMOR





manhã jorrada pelas persianas de penas azuis     recompensas de outro mundo nas estrelas     luzeiros ainda acesos
o viajante troteia ao vento de oeste     corcéis doirados com os passos guiados pelo deleite     são tão estranhas as vias do amor     da inveja
hoje leve e puro
amanhã pesado no rosto ensanguentado
um duelo no bosque verde     gramíneas mudas em peleja     espada guarnecida a lírios crava-se no peito de pura verdade

abram-se fêmeas
aos machos porosos
que vamos de cavalgada

enquanto no mundo se dorme
ame-se na montanha de jade
que vamos de cavalgada

doce o pensamento que se materializa
eternidade consorciada à fecundação
desígnio encapotado de mão velosa
a frequentar teu corpo de azevinho
invadido pela melancolia e saudade
que vamos de cavalgada

cavalgo-te     prospera em mim o mais límpido instinto     que venha o vinho     assim te amo assim te monto inebriado     o suor escorre     o membro cresce     teu pomo floresce     que o vinho venha     vulva alagada
movo-me violento     buscando o fundo ao gozo     quero ter-te     ouvir-te dizer que tanto é o prazer que até faz doer
doer que não é dor     doer de amor



623. BACANTE





uma pele
de carnívoro
no chão 
brilhante
um dente 
de leopardo
na estante
e tu
bacante
olhas-te 
num sorriso
de velho
espelho
enquanto aguardas
ansiosa
o costumeiro



622. PEGADAS QUE NÃO DESAPARECEM





à beira-mar
corda de lira retesada
corpo prateado de luar

longínqua
uma onda desperta
o forte adormece
rochas que escurecem

caminho para ti
pegadas 



621. DOÇURA DE TEUS LÁBIOS





doçura
de teus lábios
no meu sexo

dedos 
na escuridão 
do teu fruto

um ai
que se solta
no silêncio

como vieste
te foste – 



620. VAMOS AMAR?





pernas
nas minhas
entrelaçadas

de braço
na cintura
pergunto-te  

com o olhar – 
estamos nus



619. NUA NA AREIA





nua na areia
praia deserta
da nossa paixão

a espuma
envolve teus seios
redondos hirtos

uma gaivota
espreita 
o movimento

gritos
de êxtase



618. MEU CORPO NO TEU





meu corpo
no teu
teu cheiro
no meu

espasmos 
consecutivos
na carne
que renasce

beleza do mundo
nesta tarde






sexta-feira, 27 de setembro de 2013

617. QUANDO EU MORRER




quando eu morrer
não chorem     esse é o meu desejo

    não quero sinos a tocar disparates
    não quero velórios de bonifrates

    cantem     façam amor     embriaguem-se     bailem
tragam do ancoradouro o meu veleiro
lancem as minhas cinzas ao tejo
    meia-noite na baixa-mar

        rio dos meus amores     dos meus pecados
        rio das perdições     dos corações despedaçados
        rio em que nas noites prateadas de luar
                     como ninguém amei
                        e foram tantas as que beijei
                        sexo penetrado 
                        à vista do mar


            ao abismo o que é do oceano
            terra é para homem pequeno
            mar para quem temerário
            o soube defrontar e amar


as mil mulheres que tive     os quartilhos de vinho que bebi     as mil e uma noites que vivi rindo e sorrindo à madrugada

viço e lascívia     estúrdias e luxúria

casas que frequentei     boa e má fama     perdulário na penúria     avaro na abastança    

leitos de solteiras divorciadas casadas alternadeiras e rameiras
famas e camas nunca me faltaram

    
    façam peregrinações a casas de orgia
    levem rufias     carteiristas     proxenetas     
    pelotiqueiros    calaceiros     aldrabões
    femeeiros     arruaceiros
    gastem a soldada     vencimento     a pitança
    não ouçam as vozes adormentadas do povo 
    encham as mesas de mulheres e vinho novo
    soltem risadas à minha lembrança
    que o tempo passa e só vos levo a dianteira

lembrem que a cada hora morta pensei mistérios desvendados e por desvendar
chegando até onde o entendimento humano pode chegar
pensando tudo o que há para pensar

não quero mágoas     pesadelos     saudades
tive tudo o que tinha de ter
fiz tudo o que tinha para fazer

e

nos rochedos do cabo escrevam a vento e sombras

        aqui jaz o que não lamuriamos
        com setenta vezes sete vidas vividas
        de alegrias felicidade êxtases e dores
        nos parcos anos que deus lhe deu
        e acanhadas férias que a morte lhe concedeu
        navegante de corpos almas e mares
        amante de vinho mulheres e tempestades


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